A regressão do Homo Sapiens

O autocarro chega à paragem. Na fila, encontram-se pessoas de várias idades, inclusive uma idosa que se movimenta apenas com o auxílio de uma bengala. Apesar de ter ainda idade para se intitular como um jovem — pelo menos em comparação com a idosa — ele não hesita em colocar-se à frente da idosa na fila, para assim conseguir ser o primeiro a entrar no autocarro e escolher o melhor lugar para si, enquanto assobia para o lado como se fosse possível que alguém não repare na sua falta de respeito e agressiva falta de educação. No interior do autocarro, a idosa passa por ele e lança-lhe um olhar de irritação e desapontamento. E ele… ele sorri e sente-se poderoso.

No escritório, algo altera a pacatez que impera no ambiente entre colegas. Um email de um cliente insatisfeito dá conta que alguém se enganou numa encomenda e causou um transtorno de algumas centenas de euros. Apesar de todos funcionarem como uma equipa no tratamento das encomendas, o chefe aproxima-se furioso de um dos funcionários disparando impropérios e ameaçando o despedimento. Apesar de todos fazerem parte de uma equipa, ele opta por denunciar de forma clara e à frente de todos os colegas quem terá errado na encomenda, livrando-se assim de um problema e causando o despedimento de uma pessoa que tentava manter o seu emprego para alimentar, sozinho, os seus 3 filhos e pagar as contas, visto que a sua esposa tinha falecido há poucas semanas. Sem pudor, ele ri-se e respira de alívio enquanto observa o ex-colega arrumar os seus pertences numa caixa e abandonar o seu posto de trabalho…

Numa caixa de supermercado, uma mãe — sozinha com os seus 4 filhos — tenta desesperadamente colocar todas as compras no tapete enquanto tenta evitar que os filhos mexam em tudo o que vêem. À sua frente, na fila, ele sopra, barafusta e resmunga para si por ter de aturar aquele espectáculo em que as crianças não ajudam nem respeitam a sua mãe. A mãe, exausta, pergunta-lhe se ele se importa de a deixar passar à frente na fila para que assim consiga pagar as compras e terminar aquele calvário. Ele prontifica-se a negar essa hipótese e deixa não só boquiaberta a mãe das crianças, como todas as restantes pessoas da fila com a sua reacção. Ele vira-se de costas, sorri e ostenta uma expressão facial típica de quem pensa: “Era o que mais faltava, esperas e mais nada!”…

A caminho de casa, um carro tenta estacionar, mas a condutora sente dificuldade em efectuar a manobra. Chove intensamente, e após várias tentativas a senhora decide desistir do estacionamento. Liga a sinalização de emergência, sai do carro e apressa-se a retirar do carro os dois filhos menores e a sua mãe idosa com dificuldade de locomoção, para os abrigar debaixo de uma varanda, enquanto vai procurar um outro lugar para estacionar o carro. Pede desculpa pelo incómodo que está a causar no trânsito, mas ele não quer saber disso. Ele grita impropérios para ela, para a mãe idosa e para os filhos menores. Não satisfeito, ele buzina de forma constante e ensurdecedora. A condutora volta a pedir desculpa, lamentando o tempo que demorou, mas ele não quer saber e volta a lançar gritos de intimidação e falta de educação. A condutora desaba à frente dos filhos menores e da mãe, desatando a chorar devido ao stress acumulado. Ele, ao ver aquele cenário, interrompe as buzinadelas e os impropérios e sorri… porque se sente tão empoderado, tão macho e tão senhor do mundo.

E, infelizmente, este é o típico ser humano do século XXI.

E é triste como, em 2024, o Homo Sapiens começa a dar sinais de uma regressão eminente para o Homo Erectus…