A avó Maria morreu este Domingo.
Não era minha. A avó.
A minha avó Maria morreu há tanto tempo que (quase) consigo recordar-me do seu sorriso.
A minha avó Maria esperava-me à porta da sua casa com um “púcaro” de cacau quente para me fazer esquecer o frio.
A minha avó Maria tinha a pele lisa e braços redondos.
A minha avó Maria tendia bolinhas de pão para que eu e os primos as comêssemos.
Cheirava a lavado e a alfazema.
Era mãe de minha mãe.
A minha mãe é filha de “pai incógnito”.
O pai de minha mãe era tudo menos “incógnito”.
Todas as pessoas da pequena aldeia onde vivia a minha avó sabiam quem era ele.
Era o namorado da minha avó.
O único filho homem numa família com “alguma coisinha de seu”. Encantado com a pele branca de minha avó. Encantador. Com toda a certeza.
Quando ela lhe disse que tinha um filho na barriga, fez o que fazem os rapazinhos quando brincam aos homens. Prometeu-lhe casamento e foi-se embora.
Enquanto a barriga de minha avó crescia, casou-se. Em Lisboa. Terra mítica e longínqua.
A minha avó era “uma mulher séria” daquelas que “são enganadas”. Por isso (e só por isso) quando nasceu a minha mãe, os pais do seu pai, receberam-na como “mais um neto”.
A minha mãe pode brincar com as primas. Dormir na casa dos avós. Ser enfeitada com laços pelas tias.
Sem mácula. Com fotografias.
A minha avó nunca esqueceu a humilhação que era a minha mãe. Nem podia. Viveu num tempo em que a honra das mulheres se situava entre as suas pernas.
Durava pouco. Quando acabava era para sempre.
A minha mãe foi crescendo. Quando fez quatro anos a minha avó casou-se.
Sim. Mesmo desonrada. Mesmo com a prova viva. Carne, ossos e sangue da sua vergonha.
O homem com quem ela casou era extraordinário.
Filho de um “brasileiro” ele próprio senhor de muitos “estrangeirismos”.
Tocava berimbau e harmónica. Canções brejeiras só para nos fazer rir. A nós. Aos netos.
Este foi o homem que deu irmãos à minha mãe.
Um dia deu-lhe também o seu nome.
Deixou de ser filha de pai incógnito. Passou a ser filha daquele pai. Irmã (inteira) dos seus irmãos.
Foi este homem que foi MEU avô.
Quando o pai (biológico) regressou, já velho, “à terra”, pediu-lhe para lhe chamar “pai”.
Ela recusou-se.
Já tinha pai e irmãos.
E.
Não eram aqueles. Eram outros.
Ele morreu. Ela não foi ao seu funeral.
Eu sou a “cara” do outro. Disseram-mo as tias velhas e uma fotografia a preto e branco de uma das suas irmãs. Nela me reconheço. A mesma cara miúda. Este nariz de carácter. Esta fineza de corpo. Eu antiga.
Como o amor é uma coisa estranha,
os meus avós dormiam sempre de mãos dadas,
e eu,
fui a neta preferida.
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