Comecemos com uma confissão: sou fã de David Fonseca. Não de hoje, ou de ontem, mas de sempre. Quase desde que me conheço que o oiço. Habituei-me à voz, às letras e ao ar jovial que conserva (aliás, tenho para mim que David Fonseca é, na verdade, um vampiro, segredo que lhe permite manter a jovialidade!).
Ouvi todos os discos, a solo ou em projetos paralelos, alguns deles largas centenas de vezes. Entre as canções da minha vida estão várias da sua autoria. Tenho a sorte de o ter visto atuar umas quantas vezes e, inclusivamente, de já o ter entrevistado para o meu programa de rádio – na altura o KOTA, na Rádio Voz de Alenquer, casa a que ainda hoje pertenço – aquando a realização disto. Esta não é, portanto, uma review qualquer. Como não sou especialista, ou formado, em música criei uma abordagem diferente na análise a “Radio Gemini”.
Este não é um disco qualquer. Para além de ser o sétimo da sua discografia a solo, assinala também os vinte anos de carreira (sim, os Silence 4 completam este ano duas décadas de existência!). Mas vamos por partes.

O Título
O título podia muito bem ter sido “Frequência Gemini”: “no disco, a rádio apareceu porque estava muito interessado na ideia de frequência. De uma pessoa estar a viver numa determinada frequência de pensamento, de ação.” Contudo, “não funcionava tão bem. “Radio Gemini” era mais abrangente, porque o disco funciona como uma playlist” (in Blitz).
Esta explicação mostra-nos o pensamento por detrás do título mas, também, do conceito do álbum. Parte do segredo desta obra já está revelado – funciona como uma playlist. No fundo, uma rádio onde só toca David Fonseca.
O Artwork
Falemos agora da capa. Quantas vezes dizemos, ou ouvimos dizer, “é impossível inovar” e “as capas dos álbuns são todas iguais”? Isso nunca poderá ser dito de “Radio Gemini”. A capa contém uma fotografia do próprio David Fonseca, de tronco desnudado, num cenário onde as letras estão em destaque. Nesta capa, como na sua carreira, é impossível dissociar a figura da sua mensagem, a imagem do homem-menino das letras memoráveis que escreveu ao longo destas duas décadas.
Mas a surpresa maior está guardada para quando abrimos o disco. Aquilo que parecia uma capa normal torna-se num objeto surpreendente. Afinal o disco foi concebido para abrir na vertical e a capa estende-se até meio da contracapa. O restante espaço disponível ficou reservado para o nome e alinhamento do disco, reforçando o tom amarelado.
No interior a surpresa repete-se: uma vez mais temos um formato vertical, onde Fonseca surge igualmente desnudado mas agora de mãos no rosto, como que demonstrando a vulnerabilidade do ser humano e a timidez que tantas vezes já confessou ao longo dos anos – “Hoje, obviamente, não sou nem um décimo tímido do que era há 15 anos porque esta profissão obrigou-me, de alguma forma, a ter de agir contra a timidez. Mas, no fundo, continuo a ser um tímido clássico, aquela pessoa que tem medo de falar com os outros e que não sabe o que dizer na primeira frase” (in Sapo).

A capa foi concebida de dentro para fora, e não no sentido oposto, sendo por isso bem possível que procure em vão o booklet e o cd no lado errado. O booklet tem, novamente, o amarelo em destaque, sendo a monotonia tonal apenas quebrada pelo preto e vermelho das letras, assim como por nova foto de David e a respetiva ficha técnica na contracapa. Desta vez o David Fonseca da fotografia revela mais surpresa e deslumbramento do que fragilidade, numa postura que descreve bem o seu percurso.
O Conceito
Bom, para começar temos um grande conceito: um disco que é, na verdade, uma emissão de rádio. Por entre um mar de discos iguais a todos os outros, é uma autêntica brisa de ar fresco conhecer os detalhes do conceito de “Radio Gemini”.
É fascinante, por exemplo, descobrir que a duração é de uma hora para se assemelhar o mais possível a um programa de rádio (o que nos leva a uma curiosidade: sabiam que David Fonseca foi locutor de rádio quando era jovem?). Segundo: boa parte das faixas não são músicas.
Temos introduções, como se de um locutor se tratasse. Temos jingles. Temos chamadas simuladas, como que falando em direto para a rádio. Temos, digamos, o espírito do mundo da rádio, mas com o twist das vozes serem sempre robóticas. Existe vontade, mas falta a alma que só os humanos conseguem transmitir (seria esse o objetivo? Existirá aqui alguma espécie de crítica encriptada para as rádios atuais?).
Os Singles
Os singles até agora conhecidos (“Get Up”, “Oh My Heart” e “Lullaby”) serão das faixas mais unânimes do disco. São as que estão mais próximas da sonoridade a que associamos David Fonseca e todas possuem videoclipes que ficam na retina.

No entanto é sobre “Oh My Heart” que recaem todas as atenções, ou não tivesse o mesmo um videoclipe gravado no Japão. As imagens são belíssimas e é impossível não ficar fascinado com a naturalidade com que Fonseca canta, dança e atua em plena rua por entre a multidão.
Para o futuro fica uma pergunta. Teremos mais singles? Se sim, parece óbvio que temas como “Resist” e “Tell Me Something I Don’t Know” partem na frente, seguidos de perto por “Hang On To Your Dreams, You Fool” e “Slow Karma”.
As Letras e o seu significado
Este é um disco para ser ouvido “à antiga”. Ou seja, de seguida, sem pausas ou interrupções. Quem o escutar “à moderna”, faixa a faixa, vai perder o conceito do disco. E vai também encontrar em David Fonseca um Frankenstein dos tempos modernos. A ligação entre as músicas vai perder-se, assim como parte da mensagem, por isso o ideal é mesmo dedicar uma hora da sua existência a “Radio Gemini”.
Entre a quarta e a quinta audição deste disco comecei a encontrar uma ligação entre as músicas, e as respetivas letras, que me tinha escapado completamente até então. Apercebi-me que este é, essencialmente, um disco sobre amor, sentimentos, e sobre o percurso de uma relação. Juntem-se a mim, e ao David Fonseca já agora, e digam-me se tenho ou não razão.
Em “Oh My Heart” o (ou a, dado que não é claro que seja um homem ou uma mulher o protagonista desta “história”) individuo conhece a sua futura amada. Apaixona-se profundamente e sente que encontrou o amor da sua vida (“Oh, I wanna take it slow / But you know how this goes / When you walked in the room / My heart went boom / My head said u-oh” / And now I spend my nights just dreaming of you / I’ll show you Romeo if you play my Capulet”).
Segue-se uma declaração de amor, direta e sem margens para segundas interpretações em “Lullaby” – “I love you, I want you, forever and more / For everything you’re not and everything that you are / All the love I had in me / Now I know what’s it for”.
“Get Up” traz consigo as primeiras dúvidas existenciais e a prova de confiança que o nosso pinga amor (sim, dado que eu sou um homem e o David Fonseca também vamos simplificar assumindo que é um homem, ok?) dá à sua amada. Afinal de contas amar também é potenciar quem está ao nosso lado, fazendo-o(a) ver aquilo que não consegue. “How come you’re feeling so lost / That you became what you’re not / (….) Don’t let it take control now / Get Up, get ready to go / I’ll be the one to say it / you’re beautiful, now can’t you see / The secret fire that grows inside your heart / You’re the only one who can set it free / (…) Oh Baby get up and do / All you gotta do ‘cus / this world is waiting on you”.
Uma das faixas mais inesperadas é “Blah Blah Blah”. É muito breve, mas intensa, e neste contexto ganha toda uma mensagem da qual parecia desprovida. “Blah-blah-blah to the left / Blah-blah-blah to the right / So I go nah-nah-nah / yupi-yupi-ai-ei / You motherfuckers better get your / blah-blah.blah straight” – terei sido o único a ver aqui espelhada a fase em que toda a gente à nossa volta fala sobre nós, a pessoa que está connosco e a nossa relação? Há sempre quem aprove, quem desaprove e quem tente “pôr veneno”, conseguindo muitas vezes estragar o que era saudável. A isto o nosso protagonista faz “orelhas moucas”, seguindo em frente sem ouvir quem não lhe quer bem.
“Resist” é uma das faixas mais fortes do disco. Pela letra, pela música e pela colaboração fulgurante de Alice Wonder, cantora em potência de quem certamente iremos falar muito daqui a uns anos. Aqui surgem os primeiros problemas na relação. Este é o momento em que ambos percebem que se calhar o amor não é tão intenso quanto pensavam, e que o que os separa pode muito bem ser mais forte do que os aproxima – “When I met you I could see your light / It felt so right, you were the one for me / I’d never been so in love before / So I locked that door and threw away the key / But soon enough came the darkest times / And all those signs stacked this long list / You and I, we can never be one”. No entanto o amor continua lá, não se limitou a desaparecer, sendo muito difícil resistirem um ao outro – “One of us shoud know / Do we stay, do we go? / (…) You’re hard to resist now / Why do I keep resisting you? (…) We split ways ‘cus we thought it was right / But now none of us can sleep at night”.
Em “My Love Is For Real” faz nova declaração de amor, reconhecendo que o sentimento persiste mas que a distância poderá ser a grande inimiga do casal – “Cus I still love you, baby / I still want you, baby / My love is for real / If you could see me, baby / For real / I know the game / No true love is free from pain / And this is like a true love / And I can’t solve it all in this long distance call, baby / I can’t change your mind, just give me a little more time / Cus I need more time”.
Outra das surpresas de “Radio Gemini” é a faixa “C’est Pas Fini”, revelando um David Fonseca de sotaque francês em riste que desconhecíamos até aqui. Na língua do amor por excelência, o francês, o nosso protagonista divaga por entre os seus pensamentos, consciente de que nem tudo está perdido – “Quand tu viens / Je viens aussi / C’est pas perdu / c’est pas fini / Quand tu pleures / Je pleure aussi / C’est pas perdu / C’est pas fini / Quand tu souris / Je souris aussi / C’es pas perdu / C’est pas fini”.
Perdido, confuso e desiludido por a esperança anterior não se ter concretizado, o nosso Romeu precisa de se encontrar consigo mesmo. Precisa de um tempo só para si, para reavaliar tudo e perceber o que falhou, porque falhou e como é que isso o afetou. “Find Myself Again” é tudo isto e muito mais, senão vejamos – “Not so long ago I was eager to find me / Some kind of loving soul plain eyes could not see / But the truth is only one / It’s hard to find someone / If you can’t love yourself first, if you won’t let yourself be / Just be what you gotta be / Got to find my own song to sing / Gotta go and find myself again”. Desta autoanálise sai pelo menos uma conclusão esclarecedora – “But I hid behind this mask so hard, too hard to uncover / I was deceiving myself and it was hard to admit / While you were going through hell / And I did nothing about it”.
Outra das fases por que passa o nosso protagonista é um misto de raiva com o conhecimento de um velho sábio, como que ensinando a sua outrora amada. “Men, Boys, Women, Girls” é uma lição de vida sobre escolhas em forma de música. “You be humble now and I’ll teach you how / To separate the men from the boys / And if you’re easily offended / Maybe you’re just too small for my world”.
Chegamos a outro dos pontos altos de “Radio Gemini”, “Tell Me Something I Don’t Know”. Aqui o nosso ator principal decide tentar seguir em frente, naquela fase que os amigos próximos costumam definir como “precisas é de sair e conhecer pessoas novas”.
Ele assim faz e até tem sucesso na tarefa, mas não só não parece estar pronto para isso como claramente tornou-se mais exigente – “Met you at the club and you took a shot / Push me to the wall, you say you wanna talk / About the future, what it could be / And all the things you wanna do to me (…) You feed me on your words, like I need to be taught / You’re showing off your curves, now is this all you got? / Don’t get me wrong, you put quite a show / But if you want me babe, tell me something I don’t know (…) Make no mistake / Cus I’ve been through the highs and lows / All I need is to find a place somewhere / Someone I can call home”.
Talvez motivado pela pseudo conquista, que nunca o chegou a ser efetivamente, volta ao passado, relembrando os períodos dolorosos da sua relação. “Anyone Can Do It” é ainda um desafio a quem o rodeia, porque se isto do amor é assim tão fácil provem-no – “I was there for the fight / swinging left and right a thousand lips to bite / two fists, two chords, two hearts and this (…) Now anyone can do it / So come and show me what you got, will you?”.
Estamos a caminho do final, respirem fundo e abracem com carinho as últimas fases desta teoria!
“Lazy” é quase um regresso ao passado. A oportunidade até existe mas, sabendo o que sabe hoje, não será ele a ir ter com ela. Se ela quer realmente tentar algo novamente…que seja ela a dar o primeiro passo. Não acreditam? Então vejam só a letra – “I know that you’re around / please cal me I’m town / Can’t wait to see you baby / But please don’t get me wrong, I won’t be leaving home / Cus I’m lazy, so lazy (…) come lay here by my side / Or I’ll go crazy / This world has gone me none, come over get me some”.
Sem namorada. Sem amigos. E aparentemente sem família, pelo menos próxima, resta-lhe a confiança que tem em si mesmo. Porque mesmo que ninguém lhe diga ele sabe que “I’m Good” – “Got no plans and got no place to go / Got no clothes, got money to show / Well I’m good, I’m good (…) I’ve been a poet, I’ve been crazy and mad / I’ve been a sinner, oh I’ve been bad / But I’m good, I’m good”.
Outro dos temas que mais se destacam é “Slow Karma”. Aqui entra a vergonha e o embaraço. Ela tenta evitá-lo, finge que não o vê, age de forma cool… mas todos se apercebem do que se passa. Aí intervém o nosso Don Juan para dizer o quão tonto é tudo aquilo – “I saw you at the entrance, baby / You were avoinding me and acting shady / Well it’s been too long / Since we went wrong / (…) I gave you space, I gave you time so you could be / They say when you love someone you gotta learn to set them free but I / I can read your misery, aren’t you tired of playing cool? Cus everybody can see it lately / Playing cool ain’t that cool, baby”.
Em “Sloppy Kisses”, o nosso protagonista volta a demonstrar a sua força mental e psicológica, rejeitando ceder perante a influência de quem o rodeia. Ele sabe quem é, o que quer e como quer e ninguém o vai convencer do contrário, numa superior demonstração de personalidade – “I remember the first time they tried to change me, I remember it well / I remember the words, how they sounded and how they smell / (…) But hell, I say no / Don’t waste your money bitches / I say no / I’ll scratch it when it itches / I’m feeling fine, on my prime / So stop bending my spine”.
Já em contagem decrescente para o final, “Radio Gemini” presenteia-nos com “Hang On To Your Dreams, You Fool”, outro momento decisivo do alinhamento. Em conversa consigo mesmo, regressa a auto terapia, num processo em constante construção. Motivação sonora e lírica que nos obriga a regressar à nossa própria infância/adolescência e comunicar com o nosso “eu” infantil/adolescente – “You were the king that people adored / You gave them all but they wanted more / Greedy souls, you made your bet / Now there’s no roof above your head / Oh man, how could you be such a fool / When you’re at the top you got so many friends / So many lovers, so little demands / But now you’re down, so check again / They’re not that friendy in the end / Those backstabbing son-of-a-gun buffoons / But don’t you, don’t you / Don’t you go and live by those peoples’s rules”.
Outra das faixas com mais mensagem do que aparenta numa primeira audição despreocupada é “Over 5000”. Naquele que pode muito bem ser um retrato da sociedade atual, encontramos uma reflexão do mundo que rodeia o nosso protagonista, apercebendo-se dos exageros constantes da humanidade e da necessidade de parar – “Over-powered / Over-run / Over-sold / Over-weighted / Over-taxes / Over-throw / Over-whelmed / Need a break?”.
E chegámos ao último tema. “Closer, Stronger” fecha o disco (embora ainda tenhamos o “Closing Theme”, ele é apenas instrumental) num tom que considero pacifista. Neste ponto o nosso protagonista já passou por muito a nível físico, emocional e psicológico. Já se apaixonou, encantou, jurou amor eterno, se desencantou, se separou, tentou reaproximar-se sem sucesso (possivelmente mais do que uma vez) estando praticamente sozinho em quase todo o processo.
Neste ponto da história diria que ele está em paz consigo mesmo, dando prova de uma maturidade que vimos ser construída música a música em “Radio Gemini” – “Sometimes I get lost so I can be found / I’ve been waiting for you patiently / Life brings you up and it can throw you down / So I never lose sight of what life shoud be / Beautiful, wonderful / And I’m caught between beauty and beast / An emotional cannonball / Sometimes my fears grow into doubt / Tall buildings and darkening streets / And here come your arms to pull me out / (…) Younger, older / We’ll grow together so we can be / Closer, stronger”.
Se chegaram até este ponto da crónica merecem, desde já, um “obrigado” de dimensões épicas, tamanha foi essa façanha. E se o fizeram perceberam também que este não é um disco para toda a gente.
Por um lado quem gosta de Pop, e os seus derivados, poderá ficar parcialmente desiludido. Por outro, quem procura ser surpreendido ficará pelo menos parcialmente satisfeito. Mas, acima de tudo, este não é um disco qualquer. É uma viagem emocional. É a odisseia de uma pessoa, seja um “ele” ou “ela”, pelos tortuosos caminhos da vida amorosa. Sim, tem lados felizes mas também terá o seu oposto.
Assim é a vida, por vezes encantadora, por vezes assustadora. A nós cabe-nos saber gerir os acontecimentos sem nunca deixarmos de ser fiéis a quem somos e a quem queremos ser. Musicalmente falando existem grandes semelhanças com a vida ela própria. “Radio Gemini” tem de tudo: do Pop ao Rock, do Hip Hop ao Trap, passando até pela música country.
Numa era onde tantas vezes ouvimos “oh, isto é mais do mesmo” e “queremos originalidade” é uma felicidade extrema contar com esta grande obra de David Fonseca. “Radio Gemini” pode até estranhar-se mas se abrirmos a mente e a alma, vai com certeza entranhar-se.
Parabéns David Fonseca, está aqui um disco gourmet numa era de comida de plástico.
A minha teoria fez algum sentido ou nem por isso? Espero pelas vossas reações e comentários!
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