(ESPECIAL NATAL) Um menino chamado Jesus

Para compreenderem melhor o que vou dizer, quero que saibam que fui contemporâneo de Jesus de Nazaré e que assisti aos acontecimentos na origem deste manuscrito, um dos poucos que encontrarão relatando a infância de um Homem de cujos milagres só começaram a falar quando atingiu a idade adulta.

Tinha uns sete anos e, às escondidas, roubava damascos, que distribuía aos mais desfavorecidos, da banca de frutas de um mercador abastado, do género dos que se arriscariam num futuro distante a ter problemas graves na barra dos tribunais, por fraude com a emissão de faturas falsas ou a colocação de dinheiro em contas bancárias nos denominados paraísos fiscais.

O homem de aspeto asqueroso falava sempre com maus modos e, às crianças que apanhava em flagrante a mexer-lhe nas coisas, brindava com insultos e uma série de impropérios, mais próprios, não de alguém a quem tivessem roubado simples peças de fruta, mas sim o que pudesse restar-lhe de sensatez e inteligência para compreender o seu significado.

Um dia, Jesus quase foi apanhado por ele, mas cheguei a tempo de avisá-Lo e de evitar que fosse preso ou alvo de acusações mais graves, como viria a ser mais tarde, quando a pretexto de ser blasfemo foi levado à presença de Pilatos que o não livrou de vir a ser cruxificado.

Quando o conheci, Jesus já era uma criança alegre, de espírito livre, que, a não ser no comportamento responsável, em nada diferia dos rapazes que, quando crescessem e a fazer fé nos Seus ensinamentos, em momento algum haveriam de duvidar que estavam efetivamente na presença do filho de Deus.

Brincava, ria e chorava como qualquer outra criança a quem a mãe pusesse de castigo por teimar em fazer aquilo que só com o amadurecimento trazido pelo tempo compreenderia que era errado. Naquela época, aos viajantes que percorriam vastas regiões desertas a camelo, gostavam os rapazes insurretos de dar informações apontando na direção errada para que se perdessem. Depois era vê-los fugir, quando passados uns dias, voltavam aqueles ao lugar de partida, como se para não voltarem a errar, apenas tivessem de seguir na direção oposta à escolhida anteriormente.

Alguns desses rapazes eram apanhados e castigados em público, mas talvez por ser mais lesto, nunca nenhum deles consegui dar a Jesus o puxão de orelhas que achava merecer. No entanto, isso não o impediu de ouvir da mãe, que nem sempre acreditava na sua inocência à primeira, reprimendas que o faziam calar-se quando, perante a mãe, achava que não adiantava arranjar argumentos em defesa da causa própria.

Custava-lhe que, a esses homens, mulheres e crianças, que caminhavam sob um sol impiedoso ameaçando fritar os miolos a quem se atrevesse a sair à rua de cabeça destapada, ao cansaço natural de uma viagem que normalmente demorava dias, ainda acrescesse o de andarem perdidos, para a frente e para trás comos e nalgum lugar pudessem encontrar essa bendita felicidade que muitos procuram mas poucos logram alcançar.

No dia em O livrei de ser caçado em flagrante delito pelo mercador grego, que ainda se esforçou e correu atrás de nós com ganas de o termos enganado, vendendo, à imagem dele, fruta por um preço exorbitante que ainda por cima estava estragada, Jesus veio ter comigo à noite e agradeceu-me quase em silêncio por tê-lo ajudado arriscando a minha segurança. Pediu-me, de voz quase embargada, que jamais deixássemos de ser amigos e que, acontecesse o que acontecesse, nunca perdêssemos definitivamente contacto um com o outro, ainda que Dele apenas ouvisse falar à distância de estar nalgum lugar onde, mais do que na minha presença, a Sua presença fosse efetivamente importante para ajudar alguém.

Depois disso, a vida a vida encarregou-se de dar-nos destinos diferentes. Porém, nunca me afastei de Si o suficiente para não nos reconhecermos mutuamente no dia em que nos reencontrássemos, com vontade de trazer do passado o dia em que passei a admirá-lo por prever o homem bondoso em que se viria a tornar.

Acompanhei-o quase até ao fim. Larguei o que fazia e integrei anonimamente uma comitiva de seguidores que O acompanhava para todo o lado. Mesmo à conversa com os Seus mais próximos, nunca revelei a minha identidade, confesso que nunca me dei tão bem a conhecer como Ele, desde que anunciou ao mundo que era filho de Deus, sujeitando-se ao julgamento popular que o conduziu ao Monte do Calvário.

E só lhe apareci num dos últimos momentos. Confortei-lhe o rosto quando, não suportando o peso da cruz que levava aos ombros, a teve de pousar no chão, com um estrondo equivalente ao de uma violentíssima explosão que haveria de deslocar o eixo da Terra, alterando o curso da história. Vislumbrei-lhe uma lágrima no rosto mascarado de mágoa e chorei. Chorei com Ele, em nome de todas as pessoas que se comoveram por ter sacrificado a vida para salvá-las.