Notas azuis de Chopin

Nesta noite incauta, perfumada a liberdade e a excelência, surge à margem de um rio desconhecido um piano tão negro quanto a noite que se mostra, banhado por uma luz intensa e profunda, digna de contos dos deuses. Num suspiro, longe, flutuando onde a lua pousa na água, aparece um vulto tão elegante como o próprio céu, bem mais belo do que a lua. Não se percebe a cara, pois a sua essência, calculo eu, não se pode captar no seu rosto, mas sim na singularidade e perfeição dos movimentos majestosos do seu corpo. De repente pára, estático, e num breve momento que parece durar eternidades, num silêncio musical da natureza, dá um suspiro profundo como todos os males se expulsa. E num momento seguinte, um gesto mostrando o reflexo de uma mão delicada surge no brilho da água, e a música começa.

São notas pausadas de Chopin, que correm pelo ar em harmonia com o seu corpo. Este balança-se, como o vento passeia entre as folhas das árvores, dança como a água corre por entre as suas margens, e é tão intensa quanto o fogo a arder com toda a sua pujança. A minha alma paira com o vulto, sobrevoando o seu palco de água, observando o agradecido público: a Natureza. E que felicidade é ver de perto o seu rosto, feliz e inocente, bondoso e carinhoso, determinado e livre, banhado por um vasto cabelo azul que cai muito poético no seu rosto. A sua face é deliciosamente delineada, tão branca como a suave neve que os Deuses nos oferecem. Os seus lábios parecem feitos de gelo, e sorriem para as árvores que se movem ao som de uma tal sinfonia de Chopin juntamente com o seu corpo, numa união glorificante.

O piano toca sozinho notas suaves e delicadas, decididas como um esplêndido verso de poesia, toca em paz e enamorado, pelo vulto e pela Natureza. O seu som inebriante sai de si como um vulto de fumo, transformando-se aos poucos, em forma de humano juntando-se assim à bailarina, como se fosse o seu verdadeiro par. E a minha alma dança com eles porque assim faz sentido, porque assim eu vejo de perto e sinto mais intenso este momento inexplicável. Talvez na realidade eu seja a Lua, talvez eu seja o Rio ou talvez eu seja a Música que a motiva a dançar, o fumo que a acompanha, o piano tão negro quanto a noite, o piano enamorado por ela. Talvez eu seja a Natureza que atentamente a observa. Talvez eu seja dela.

O vulto de fumo desaparece e fica só a noite banhada pela lua, a minha alma colada ao corpo dela. E da alma saem os meus braços e as minhas mãos, podendo finalmente acariciar a sua pele. E da minha alma surge o meu rosto, o meu corpo junto ao seu, ambos flutuando por cima do rio. Sinto-a bem perto de mim e nos seus olhos vejo uma felicidade eterna, uma paz infinita, uma beleza estonteante e um verdadeiro amor. Talvez eu seja dela.

E num segundo seguinte a música é interrompida e aquela bailarina esculpida desvanece-se pelo ar e o meu coração, sem eu contar, cai-me na mão. Pobre coração não pode mais nada senão chorar enquanto eu permaneço a observar. A noite está ainda mais escura, a lua um pouco mais insegura e a Natureza inquieta. Ou talvez eu seja a noite, talvez eu seja a Lua ou até mesmo talvez eu seja a inquieta Natureza. E olhando à volta, ainda com o coração a chorar, decido voltar demoradamente para junto do piano que desta vez se encontra calado e tristonho. Talvez eu seja o piano, talvez eu seja dela.

Sento-me nele e penso: “São notas azuis de Chopin que correram pelo ar mas que tiveram que findar”. E sentada no meu piano, com as minhas mãos acariciando as suas teclas, decido voltar a tocar (porque percebi agora que estive este tempo a fazê-lo) uma tal sinfonia de Chopin. À medida que vou tocando, o meu piano fica mais leve e dirige-se para o meio do rio ainda banhado pela lua. Desta vez, é a mim que a Natureza observa. E o piano, flutuando pelo rio, faz-me dançar. As notas ouvem-se, ecoando desde o rio até à lua e quando se ouve finalmente a última, volta o meu coração a sonhar. E o meu piano desta vez risonho pausa um momento, tudo se desvanece e naquilo que me parece um temível imenso espectro preto, viajo agarrada a ele, talvez eu fosse ele. E num abrir e fechar de olhos, que na realidade foi uma eternidade, ele volta a pousar, desta vez num belíssimo areal à margem do vasto mar, de um azul tão suave quanto o do céu, um mar banhado pelo sol. Eu volto a tocar, desta vez outras distintas notas, com uma outra bailarina e talvez eu seja dela.

Foram Notas Azuis de Chopin tocadas numa noite incauta, perfumada a liberdade e a excelência e nelas lembrarei sempre os seus cabelos azuis e a sua pele como a neve, talvez eu fosse dela. Agora pertenço a ti, meu querido amor.