Santos e Demónios Populares – Amílcar Monteiro

E eis que chega em Junho, mês dos Santos Populares. Como sempre, tenho seguido as comemorações tradicionais à risca: fui a um bailarico e enfrasquei-me até à morte ao som da típica e castiça música popular brasileira. Porque eu sou fã das festas dos Santos e de tudo o que as rodeia. Adoro os odores que polvilham a cidade nesta época, o cheiro a sardinha assada, o cheiro manjerico e o cheiro a urina.

Mas existe um fenómeno que começa a fazer com que eu tenha medo de frequentar os bailaricos: o comboio de pessoas. Enquanto antigamente este comboio apenas se formava quando tocava a música “Apita o Comboio”, hoje em dia gera-se com a imprevisibilidade de uma catástrofe natural. E eu não nutro especial apreço por esta centopeia humana composta por bêbados demasiado felizes, por três razões que descrevo de seguida.

Primeiro, porque sou sempre forçado a integrar estes comboios contra a minha própria vontade. Num momento estou parado a admirar as decorações juninas e, no outro, já faço parte de um comboio com rumo incerto, que causa a devastação de cerveja e sardinha por onde quer que passe. Tenho até um primo meu que foi apanhado na rota de um destes comboios e não se safou. Descansa em paz, Venâncio.

Em segundo lugar, tenho um medo avassalador que o comboio onde viajo se parta em dois e eu fique como motorista, porque não saberia como reagir. Não só é muita pressão ter uma data de pessoas agarradas a mim, cuja diversão depende do meu desempenho enquanto motorista, como também tenho receio de entrar em pânico e conduzir o comboio para um precipício ou, pior ainda, para a linha de Sintra.

Finalmente, porque acho que um conjunto de desconhecidos todos agarrados, com as palmas das mãos suadas e a respirarem para cima da nuca uns dos outros, é meio caminho andado para apanhar uma doença. E ninguém me tira da cabeça que a SIDA que apanhei foi num comboio destes que integrei o ano passado. Também pode ter sido numa orgia bissexual num quarto às escuras na qual participei, mas estou mais inclinado para a hipótese do comboio.

E depois existe uma questão que me assombra há já muito tempo: afinal, como é que se forma um comboio destes? Sabemos que são precisas pelo menos duas pessoas alcoolizadas – porque se for composto por uma só, denomina-se apenas de “bêbado pateta aos pulinhos” – mas não sabemos como é que este fenómeno eclode . Em conversa sobre este tema com uma das minhas sete namoradas – a única que está viva – ela elucidou-me: o responsável pela formação é sempre a segunda pessoa que está no comboio. É essa a criatura que coloca as mãos nos nossos ombros, começa a empurrar-nos e diz “vamos fazer um comboio”. É ela a verdadeira locomotiva destes comboios movidos a vapor etílico.

Agora que, finalmente, conheço a origem de todo o mal, já elaborei um plano: durante o resto das comemorações dos Santos, quando detectar um comboio a formar-se, vou tentar colocar-me como terceiro elemento. Só que em vez de colocar as mãos nos ombros da pessoa à minha frente, vou colocá-las na garganta e estrangulá-la lentamente. Portanto, se o leitor ouvir falar do “Estrangulador da Bica”, do “Asfixiador de Alfama” ou do “Serial Killer de Marvila” já sabe a quem pode vir agradecer.

 

Este texto é dedicado ao meu primo Venâncio.

R.I.P. Venâncio (1975-2007)

Crónica de Amílcar Monteiro
O Idiota da Aldeia