A Nova Auschwitz – A Política de Imigração dos EUA

Sou traficante. Sou preso. São-me confiscados os meus bens, e passam-me um recibo, para os poder levantar quando cumprir a minha pena.

Sou ladrão. O procedimento repete-se.

Sou detido por algum motivo aleatório, o procedimento repete-se.

Sou imigrante clandestino. Tenho um filho/a. Atravessamos a fronteira e somos rapidamente interceptados, detidos, isolados. Isto bateria certo e faria sentido, se não fosse uma ressalva; somos detidos, isolados, separados por tempo indefinido e para localizações desconhecidas.

Mas afinal, o que é que estava a acontecer nas fronteiras americanas? Ou melhor, o que é que se passa nos Estados Unidos? O que se passa é que este governo de Trump se transformou, aos poucos, de forma dissimulada, num pseudo-estado autoritário, onde se vão fazendo pequenas experiências, com consequentes retrocessos legais sempre que corre mal, mas são feitas na mesma.

Tem sido esta a realidade para cerca de 2300 crianças na fronteira entre os Estados Unidos da América e o resto do mundo. Ao chegarem à fronteira, seja ela qual for, ou aos centros de detenção, pais são detidos e separados dos seus filhos, não por paredes e barras de ferro, como seria de esperar para interrogatórios ou fins processuais, mas por quilómetros de desconhecido.

Isto, até ao passado dia 20 de Junho de 2018, dia em que o presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, recuou na sua política radical anti imigração, legislando para que as famílias imigrantes sejam detidas na mesma, mas permaneçam juntas.

No entanto, existem coisas que não fazem sentido, ou melhor, fazem, numa perspectiva de política de terror. Faz sentido que se aplique uma política de terror para com estrangeiros e minorias que buscam refúgio ou melhores condições de vida, quando se tem uma mensagem nacionalista e pseudo-autoritária onde “Make America Great Again” é o mote (curiosamente originário na campanha eleitoral de Ronald Reagan em 1980 à presidência norte-americana) não vão estes “roubar ou desvirtuar os bons costumes, trabalho, e paz na vida dos bravos cidadãos que construíram este país”.

País que, aliás, é o mais hipócrita desde que existe história, pois foi fundado por imigrantes, foragidos, desertores, e todo o tipo de escorja que não interessava ao velho continente, e graças a um ataque terrorista contra Inglaterra! Sim, o tão maravilhoso feriado nacional comemorativo da independência americana foi, para todos os efeitos, um ataque terrorista.

Sim, bem sei, muito boa gente também para lá foi, em busca de uma vida melhor, mas para tal, como todos os outros, desapropriaram e despojaram quem já lá estava, e sempre esteve (visa-se, os nativos americanos).

Ora então, num sistema onde, segundo o depoimento do advogado Erik Hanshew, Assistant Federal Public Defender em El Paso, Texas, publicado pelo jornal The Washington Post dia 20 do presente mês de Junho de 2018, e passando a citar:

“Este governo parece não ter infra-estrutura, política ou plano para lidar com a destruição de famílias que buscam refúgio ou uma nova vida no nosso país. A desordem e a confusão estão em plena exibição nas audiências de detenção a que assistem em nome dos meus clientes – essas são as audiências para determinar se o individuo acusado poderá permanecer em liberdade enquanto o seu processo criminal se encontra pendente.

Durante a audiência, o promotor federal coloca um agente do estado na barra de tribunal, para dar conta do que aconteceu no caso e, então, eu posso fazer uma análise cruzada. As pessoas nunca saberiam, a partir do testemunho do agente, que se estava a lidar de um pai que foi separado de uma criança. Isso não é sequer mencionado no auto. O promotor não faz nenhuma pergunta sobre a criança. Em nenhum momento estes discutem a criança. Esta bem podia nem sequer existir.”

Gostaria de fazer enfase a esta última frase. “Esta bem podia nem sequer existir”.

Prosseguindo, Erik explica:

“Durante o interrogatório a uma agente, perguntei se esta sabia que o meu cliente foi preso com a filha de 4 anos de idade. Respondeu que não. Fiquei chocado, mas este é o jogo. Perguntei se a agente era a investigadora principal e se tinha contactado com os agentes de campo neste caso. Disse que sim. Perguntei se tinha tomado conhecimento de que o meu cliente tinha uma filha de 4 anos com ele. Respondeu que sim, mas acrescentou que não sabia que a criança era uma rapariga de 4 anos. (…) O juiz apenas a olhava especado. É assim que as coisas vão.

Eu pergunto sobre a criança; o governo interpõe objecção; o juiz obriga a agente a responder. A resposta é sempre a mesma.

‘Sabe qual a localização da criança?’ Não ou desconhecido.

‘Forneceu ao meu cliente informações sobre a localização da sua filha?’ Não ou desconhecido.

‘Forneceu ao meu cliente qualquer informação sobre como ele poderá encontrar a sua filha?’ Não ou desconhecido.

Num caso raro, um agente disse que uma criança estava numa cidade em particular – uma bem distante de El Paso. Mas, claro, não foram conhecidos detalhes sobe a localização específica da criança.

Numa outra audiência, perante um juiz diferente, um dos meus colegas perguntou ao agente no tribunal sobre o paradeiro da filha do meu cliente. Objecção quanto á relevância da pergunta. O juiz virou-se para o promotor, exigindo saber por que razão a pergunta era irrelevante. A dada altura, este bate com a mão na mesa, fazendo uma caneta voar.

Este tipo de exibição emocional é inédito num tribunal federal. ‘Eu não entendo isto!’ dizia o juiz. ‘Se alguém (entenda-se guardas prisionais e pessoal administrativo) na prisão ficar com a sua carteira, passam-lhe um recibo. Se lhe levarem os filhos, você não recebe nada? Nem um pedaço de papel?’”

           …*…

É depois de ler depoimentos como este, notícias e artigos jornalísticos publicados em jornais internacionais como The Washington Post, The Guardian, The New York Times, Agência Reuters, mas também jornais nacionais como o Diário de Noticias, Jornal de Noticias, e Público, que chego à conclusão de que, para todos os efeitos, o povo que esquece ou ignora o passado está eternamente condenado a repeti-lo, lembrando as palavras de George Santayana, “Those who cannot remember the past are condemned to repeat it.” (The Life of Reason: Introduction and Reason in Common Sense. Pg. 172, George Santayana, MIT Press, 2011)

Todos estes avanços e recuos, todos estes pequenos detalhes, crianças a serem separadas dos pais, políticas de tolerância zero para estrangeiros, migrantes, exilados, refugiados ou simplesmente turistas que sejam de uma outra cultura que não a americana/ocidental, pois especificar que são provenientes de países árabes, hispânicos, espécimes exemplificatórios de uma qualquer minoria religiosa ou étnica nos Estados Unidos… basicamente tudo o que não seja americano, branco, de boas famílias e bons costumes é considerado “Alien”, como faz, e fez, questão (a administração Trump, diga-se) de designar prontamente em decreto-lei “EXECUTIVE ORDERS, Affording Congress an Opportunity to Address Family Separation, IMMIGRATION,  Issued on: June 20, 2018”, e contextualmente traduzido por “estrangeiras”, onde passo a citar:

“Sec. 2. Definições.

Para fins desta lei, as seguintes definições aplicam-se:

(a) “Família estrangeira” significa:

(i) qualquer pessoa que não seja cidadã ou nacional dos Estados Unidos que não tenha sido admitida ou não esteja autorizada a entrar ou permanecer nos Estados Unidos, que tenha entrado neste país com uma criança estrangeira ou filhos estrangeiros no ou entre portos de entrada e quem foi detido; e

(ii) filho estrangeiro ou filhos estrangeiros dessa pessoa.

(b) “criança estrangeira” significa qualquer pessoa que não seja cidadã ou nacional dos Estados Unidos que:

(i) não tenha sido admitido ou não esteja autorizado a entrar ou permanecer nos Estados Unidos;

(ii) é menor de 18 anos; e

(iii) tem uma relação legal entre pais e filhos para um estrangeiro que entrou nos Estados Unidos com a criança estrangeira em ou entre os portos de entrada designados e que foi detido. ”

Com isto digo que, e enquanto permanecerem crianças separadas dos seus pais nas fronteiras devido a uma política extremista de “zero tolerance”, as fronteiras americanas tornaram-se na nova Auschwitz-Birkenau, mas sem câmaras de gás, pelo menos.