Che Guevara – Um Apaixonado Por Uma Causa

“CHE (pronunciar tché) é a interjeição característica da linguagem argentina familiar para interpolar, chamar a atenção do interlocutor. Consoante a entoação, as circunstâncias, CHE, que é sinal de tratamento por tu, pode significar mil e uma coisas: ó pá, olá, ouve lá, incrível! Etc. Foi com esta alcunha que os cubanos castristas passaram logo a designar o jovem médico argentino que iria juntar-se à sua causa, “um nome que mais tarde, ele tornou célebre, do qual fez um símbolo”. – Pierre Kalfon, em CHE, Ernesto Guevara, uma lenda do século

Os dados históricos não são certos. Uns dizem que nasceu no dia 14 de junho de 1928 mas segundo o escritor Jon Lee Andersen, terá nascido no dia 14 de maio do mesmo ano, na região de Rosário, na província de Santa Fé, na Argentina. Ernesto Rafael Guevara de la Serna era o mais velho de cinco filhos de uma família de classe alta. Desde cedo, foi-lhe diagnosticado asma e como recomendação médica, a família mudou-se para a província de Córdoba, um destino frequente para as pessoas que tinham dificuldades respiratórias, devido às condições meteorológicas e as altitudes mais elevadas. A sua instrução inicial foi ministrada em casa, pela mãe, que se revelou uma figura forte no se desenvolvimento intelectual e político. Cresceu no meio dos livros, tornando-se num leitor entusiástico e eclético. Começou pela poesia e pela escrita de Pablo Neruda, e de seguida enveredou pelas obras de Marx, Engels e Lenine.

A partir de 1944, a condição financeira da família Guevara começou a declinar. Ernesto tomou a iniciativa de arranjar emprego e tentou a sua sorte como funcionário da câmara de uma vila, nos arredores de Córdoba, conciliando com os estudos no liceu. Após concluir os estudos liceais, mudou-se com a família para Buenos Aires, onde com 19 anos ingressou na faculdade, no curso de medicina. Tornou-se num jovem aparentemente bem-parecido, com o cabelo curto e penteado, olhar profundo e de sorriso cativante. Sempre com um espírito diligente, continuou a trabalhar, desta vez numa tipografia. Em janeiro de 1951, Guevara encontrava-se a seis meses de concluir os estudos, mas interrompeu os mesmos, com o intuito de fazer uma viagem pela América Latina. Nos dias de hoje, poderíamos chamar a esta interrupção de ano sabático, um período em que os jovens tentam perceber o que querem da vida ou que a vida lhes pode oferecer mais.

Na companhia do seu amigo Alberto Granado, partiram juntos numa moto e percorrem cerca de oito mil quilómetros. Não foi propriamente uma viagem por pontos turísticos mas, por minas de cobre e aldeias indígenas onde, os dois amigos conheceram e conviveram com os mais necessitados, percecionando a realidade de outra perspetiva, numa pobreza endémica e condições de trabalho degradantes. Guevara percebeu que se tratava de uma “doença” que assolava a América Latina e atribui-lhe um responsável: o capitalismo norte-americano. Regressou à Argentina e concluiu os estudos superiores para depois em 1953 voltar a fazer uma segunda viagem, doze mil quilómetros desta vez pelos seguintes países: Bolívia, Perú, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras e El Salvador, terminando na Guatemala. Aí, presencia a luta do recém-eleito presidente Jacob Guzmán que combatia a pobreza e tentava aplicar a reforma agrária. O governo norte-americano que se opunha a Guzmán, coordenou através da CIA, ações que desencadearam um golpe de estado contra o governo socialista da Guatemala. Este acontecimento foi fundamental na construção da consciência política de Guevara. Nesse momento, autodefiniu-se como revolucionário e hasteou a sua bandeira contra o imperialismo americano. Foi também durante a sua passagem pela Guatemala que conheceu aquela que viria a ser a sua primeira mulher, a peruana Hilda Gadea, com quem veio a ter uma filha.

Entretanto, ainda em 1953, no dia 26 de julho, dois irmãos cubanos, Fidel e Raúl Castro, organizaram uma operação para pôr termo ao regime repressivo que vigorava em Cuba, personificado por Fulgêncio Batista, bastante apoiado pelos EUA. A operação consistiu no assalto ao Quartel Moncada e fracassou, valendo três anos de prisão e consequente exílio no México. E foi aqui que Guevara e Fidel se conheceram, por intermédio do irmão deste último, Raúl Castro. O argentino juntou-se aos guerrilheiros cubanos, primeiro como médico e depois como combatente. Uma segunda operação para derrubar o regime de Batista pôs-se em marcha e Guevara aliou-se a Fidel Castro na sua causa. E foi aqui que adquiriu a alcunha que o acompanharia para sempre. Entre os homens que partiram para Cuba com Fidel, o argentino que viajava de moto e escrevia diários, era agora “Che”, um chefe militar e braço direito de Fidel, com uma visão para mudar o mundo: o socialismo revolucionário. Deixou crescer o cabelo, a barba e passou a usar uma boina de estrelas militares. Após o desembarque em Cuba, instalaram-se nas montanhas de Sierra Maestra, através da qual iniciaram o golpe para libertar o país do regime opressor. Foram dois anos de luta, operada através das montanhas. A vitória apesar de muitas perdas, foi completa, fazendo com que Fulgêncio Batista se exilasse na República Dominicana.

Após a vitória da guerrilha, as tropas entraram em Havana no dia 1 de janeiro de 1959 e, foram recebidas com grandes ovações por parte dos habitantes (mas nem todos, alguns acabariam por fugir e instalar-se nos EUA). O próximo passo foi reconstruir o país. Fidel converteu-se em Presidente e nomeou Che como comandante de “La Cabana”, um tribunal militar em Havana, onde foram conduzidos inúmeros julgamentos e execuções violentas contra os opositores. Castro e Guevara eram a favor de uma limpeza política, necessária à causa revolucionária. Mas também foram introduzidas medidas positivas como campanhas contra o analfabetismo e promoção de saúde, gratuitas para o povo.

O açúcar constituía uma grande matéria-prima de Cuba e o seu maior comprador eram os EUA. Com a tomada do poder pelos revolucionários, as relações comerciais entre os dois países ficaram fragilizadas. Em 1961, os cubanos que se tinham refugiado nos EUA levaram a cabo, com o apoio da CIA, um desembarque na Baía dos Porcos, na costa sul de Cuba. Fidel mobilizou todas as suas forças e retaliou, fazendo-os recuar.

Che foi acumulando cargos, tenso sido indigitado por Fidel como Presidente do Banco Nacional e Ministro do Governo. Mas passar o dia inteiro fechado num gabinete não era de todo o que Che se imaginava a fazer, por isso, saía para os campos de cultivo e para as fábricas, ajudar os camponeses e operários. O tempo que dedicava ao povo e à causa, fez com que o seu casamento chegasse ao fim ainda no ano de 1959. Sonhava com utopias, desprezava bens materiais, queria transformar Cuba numa nação industrializada moderna. Em 1961, decorreu um Encontro Mundial com ministros da Economia, em Punta Del Este, no Uruguai, onde, Guevara apelou contra o imperialismo dos EUA. Não obstante e sabendo nós, que por vezes a política adota duas faces, Che tentou secretamente um acordo com Washington. As cartas foram colocadas em cima da mesa: para pôr termo ao bloqueio imposto pelos EUA, Cuba teria de acabar com o sistema de partido único e estabelecer eleições livres. Guevara não cedeu. Fechadas as portas de reconciliação com os EUA, Che tentou a sorte com a URSS. Em política ou até mesmo em qualquer relação humana, uma mão lava sempre a outra. Em troca de ajuda económica, Fidel deu permissão a Kruchtchev para instalar misseis nucleares, a 240km dos EUA. Kennedy reagiu, fazendo ameaças de guerra nuclear caso os cubanos decidissem pôr em marcha uma operação de ataque. A ilha acabou por se tornar um palco de confronto entre as duas grandes potências. A URSS recuou. Che ficou desiludido e apontou duras críticas à URSS. Fidel sentiu-se desconfortável porque precisava da ajuda do aliado soviético. A relação entre o mestre e o seu aprendiz começou a deteriorar-se a partir de então. Enquanto diplomata de Cuba, Che Guevara percorreu o mundo a difundir a mensagem do socialismo cubano. Queria exportar o seu idealismo mas Fidel nunca quis que Cuba se tornasse numa base para lançar revoluções noutros países.

No dia 3 de outubro de 1965, num comício em Havana, Fidel leu uma carta que Che lhe tinha redigido de forma pessoal, aquando da sua decisão de saída definitiva de Cuba. Carta na qual Che se afirmava como um revolucionário e que se iria dedicar a outros campos de batalha. Parece evidente ter havido aqui uma jogada astuciosa por parte de Fidel em não se querer ver comprometido com o sonho messiânico de Che, ao ler a carta em público. Escusado será dizer, que Guevara se sentiu traído e devastado. Estava agora sozinho. Continuou o seu percurso de cavaleiro errante que o levou até África, mais propriamente ao Congo, onde se encontrava um regime apoiado pelos EUA, após o assassinato de Patrice Lumumba em 1961. Aí quis reunir um grupo de rebeldes mas estes, estavam muito mal organizados, levando a uma derrota. Seria o início do fim para Che Guevara. Partiu para a Bolívia. Aí tentou estabelecer uma base guerrilheira para lutar pela unificação dos países da América Latina. Não contou previamente com as adversidades com as quais se deparou: terreno desconhecido, falta de apoio do partido comunista boliviano e desconfiança dos poucos camponeses que habitavam a região que Che tinha escolhido para as suas operações. Não tardou muito para que o Exército boliviano, juntamente com o apoio de agentes da CIA descobrisse o esconderijo de Che e o capturassem. Foi conduzido para uma escola de uma aldeia chamada La Higuera onde, no dia seguinte foi alvejado mortalmente. Uma execução derivada da decisão tomada na alta administração boliviana: o presidente da Bolívia e o comandante das FA. Era o dia 9 de outubro de 1967. Ernesto Che Guevara tinha 39 anos. A sua queda é revelada numa foto em que está deitado numa maca, de perfil escanzelado, de olhar vazio e exibido como um troféu. O seu corpo foi atirado para uma vala comum, numa localidade a 50 quilómetros do local onde foi executado. Os seus restos mortais foram encontrados em 1997 por uma equipa de investigadores e seguidamente transladados para Cuba. Ironicamente, Fidel Castro reabilitou-o como herói da revolução, ordenando a construção de um mausoléu em sua homenagem, na zona de Santa Clara, província de Villa Clara, que atrai todos os anos, milhares de visitantes.

O regime cubano ainda hoje recorda Che Guevara como objeto de veneração. Nas escolas, Che é proferido quase como um hino na voz das crianças: “Pioneros por ele comunismo, Seremos como el Che!

A sua morte serviu para aumentar a mística em torno da sua figura com a qual milhões se identificaram. Uns recordam o militar cruel, autoritário, que mandou executar centenas de pessoas. Outros, recordam-no como um semeador de sonhos, às vezes utópico mas que, nunca se deixou corromper pela hierarquia instalada no poder.

Mas pensando no seu legado, o que resta realmente, passados cinquenta e um anos da vida breve mas intensa do rapaz bem-parecido que chegou a Buenos Aires, aos 19 anos, para tirar o curso de medicina? A imagem de um viajante apressado. Em 1951, sem se deixar deslumbrar pelas luzes da cidade nem pelas perspetivas de uma carreira confortável, fez uma pausa nos estudos e deixou que os seus sonhos o levassem a correr as estradas de mota, com um diário e uma máquina fotográfica. Inocente e curioso, rapidamente se transformou num Dom Quixote. Cinco pontos cruciais assinalaram esta viagem marcada pela pressa: a Guatemala onde teve o primeiro contacto com a influência da hegemonia americana; o México, por ter aí encontrado o seu mentor; Cuba, a Terra Prometida, insuficiente para a sua fome ou rampa de lançamento para o mundo; o Congo como um terceiro mundo ignorado pelas teorias marxistas; e finalmente a Bolívia, terrível fracasso e palco da sua morte glorificada mais tarde.

O que resta, passados cinquenta e um anos da morte do homem que dedicou a sua vida fugaz a uma causa maior do ele próprio? Uma imagem poderosa, a principal, captada pelo fotógrafo cubano Korda, pouco antes da sua morte e, divulgada em 1967. Uma imagem que se tornou numa das mais difundidas da era contemporânea e convertida numa marca. Em 1999, a Revista norte-americana Time, incluiu Ernesto Che Guevara na sua lista das 100 personalidades mais importantes do século XX, na área dos líderes revolucionários. Usado como sinal de reconhecimento dos manifestantes europeus de 68 e dos estudantes universitários. Ainda no sábado passado (dia 06/10/18), quando fui ver uma exposição patente no CCB, Marcelo Brodsky: o fogo das ideias de 1968, encontrei uma referência a Che Guevara. Uma fotografia de uma manifestação em Londres com a seguinte frase escrita na parede: “Che Guevara had just been murdered and he was already marching in London”. Dei-me conta de que a sua imagem e presença está fixada numa eterna juventude, perpetuada por todo o mundo. Uma imagem de um homem combatente, apaixonado, semeador de palavras e sonhos e, que se esbateu numa marca de consumo. Marca de consumo que às vezes me parece usada por tantos que lhe desconhecem o verdadeiro significado. Não consigo concluir esta crónica senão a questionar-me e, talvez os leitores também já o tenham feito: será Che Guevara uma daquelas individualidades cujo sentido de vida só adquire significado após a sua morte?

 

Sugestões:

KALFON, Pierre “CHE, Ernesto Guevara, uma lenda do século”, Círculo de Leitores, 1997

Série VIDAS – Che Guevara  (Documentário)