Timor-Leste: O Despertar de Uma Nação

Ai Timor

Calam-se as vozes

Dos teus avós

Ai Timor

Se outros calam

Cantemos nós”

– Refrão da música escrita pela Banda Trovante em 1990, e cantada em 1999 por Luís Represas no contexto da independência de Timor.

7 de Dezembro. É feriado em Timor-Leste. Um dia que presta homenagem aos heróis nacionais. Foi a 7 de Dezembro de 1975, que Timor foi fustigado com a invasão e consequente ocupação por parte da Indonésia. Um capítulo sombrio da história deste pequeno e mais recente país. Porquê escrever sobre Timor? Porquê escrever sobre um país que está a mais de catorze mil quilómetros de distância de Portugal, que logo ali ao lado, a Austrália? Quando parei para reflectir nas respostas a dar a estas questões, encontrei mais de um motivo: recordo-me que a independência de Timor ocorreu na transição para o novo milénio. Recordo-me porque a música cantada por Luís Represas estava na ordem do dia. Na inocência dos meus dez anos de idade que tinha na altura, não tinha um conhecimento muito concreto do que se estava a passar mas a mensagem principal ficou retida: Timor acabava de se tornar um país livre. Mais tarde, vi o meu padrinho, um elemento das forças de segurança portuguesas, a participar numa missão internacional de apoio à paz, através da ONU, em Timor. Há dois anos atrás, numa livraria ambulante, estacionada numa estação de comboios, o título de um livro chamou-me a atenção. Chamava-se “Azul Suai”, da autoria do Hernâni Carvalho, e era o seu romance de estreia, num registo literário diferente daquilo que este polémico e admirável jornalista nos tem vindo a proporcionar. Adquiri-o no momento, li-o sofregamente, e de vez em quando, dou por mim a reler algumas passagens. E por fim, last but not least, o meu próprio contexto de trabalho actual, virado para a cooperação internacional, faz com que eu, volta e meia, vá parar aos assuntos relacionados com Timor. Acho que todos estes motivos se reúnem e convergem num só sentido, que é a alma de Timor a povoar a história de Portugal.

Podíamos dizer que Timor é uma ilha que fica nos confins do globo, mas na verdade é um lugar que desde o período dos Descobrimentos Portugueses foi sempre muito atractiva. De facto, os portugueses foram os primeiros europeus a pisar o solo daquela ilha no início do século XVI, que era então habitada pelo povo Maurebe. Inicialmente motivados pelos recursos naturais que o território dispunha, os portugueses rapidamente levaram consigo missionários difundindo a religião católica, que é actualmente predominante em Timor.  Mas a influência da Igreja Católica não se limitou apenas à esfera espiritual, com a conversão de muitos timorenses. Também permitiu que a língua portuguesa passasse a ser a língua de ensino, ao lado do tétum, nas escolas e seminários. Ao longo dos séculos, o português foi-se afirmando progressivamente como um dos traços distintivos da cultura timorense.

A chegada dos portugueses em 1515, foi, em primeira instância, a chegada de uma nova religião, não se traduzindo na colonização da ilha, que viria a ocorrer efectivamente alguns séculos mais tarde. Na fase inicial da presença portuguesa, a mais alta autoridade da região eram os capitães das várias expedições que se levavam a cabo até à ilha. A partir de 1665, foi criado o cargo de capitão-mor, visando estabilizar a presença portuguesa no território. António de Hornay, um topasse, foi o primeiro a assumir funções nesse cargo. Topasse, era o termo que designava um grupo de pessoas descendentes de relações entre portugueses que se estabeleciam no território na sequência das expedições, com nativos. Não é novidade que nós, portugueses entre todos os conquistadores europeus, sempre tivemos uma particular aptidão ou tradição para nos envolvermos com os locais, gerando o grupo étnico de mestiços, espalhados pelo mundo. A etimologia do nome Topasse não é muito clara mas algumas fontes revelam que poderá querer dizer “bilingue” ou “intérprete”. Seja como for, durante o século XVII, foram os topasses que dominaram a política em Timor. A organização da ilha enquanto colónia só se efectivou a partir do inicio do século XVIII. A chegada do primeiro governador, António Coelho Guerreiro, ocorreu apenas em 1702, e aí sim se verificou o início da implantação de uma muito pequena estrutura governativa, administrativa e militar. Aquando da chegada do primeiro governador já uma parte da aristocracia de Timor se encontrava convertida, com nome cristão português. Com isto, deve salientar-se que o cristianismo entrou na cultura e história timorenses não pelas armas e pela imposição, mas sim fruto de rotas comerciais.

A divisão de Timor entre Portugal e os Países Baixos

A partir dessa altura e até finais do século XIX, Timor foi palco de disputas entre Portugal e os Países Baixos, que detinham a rota do comércio das especiarias da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. A rivalidade só foi solucionada através de vários acordos, que culminaram no Tratado de Lisboa de 1859 que, conduziu à demarcação do território em dois: Timor Ocidental Holandesa tendo como capital Cupang e, Timor Oriental Português com capital em Díli. As fronteiras só ficaram verdadeiramente definidas em 1914, quando Portugal e os Países Baixos assinaram um acordo, designado de Sentença Arbitral.

Durante a Segunda Guerra Mundial, em Dezembro de 1941, após o ataque a Pearl Harbor, Timor foi ocupado por tropas holandesas e australianas que se serviram da ilha como linha de defesa contra o avanço japonês em direcção à Austrália, violando assim a neutralidade portuguesa. Mediante os protestos diplomáticos portugueses, foram enviadas para Timor tropas portuguesas estacionadas em Moçambique. A invasão japonesa em Timor, materializou-se em Fevereiro de 1942, resultando em inúmeras mortes. Para recuperar e defender os interesses em Timor, o governo de Salazar negociou e assinou acordos de cedência de bases aéreas nos Açores aos EUA. No final da Segunda Guerra, Portugal recuperou Timor, completamente arrasada. Em 1949, a zona de Timor que pertencia aos holandeses, tornou-se independente, adoptando o nome de Indonésia.

Em 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução 1514 de 14 de Dezembro de 1960, considerou o Timor Português como um território não autónomo sob administração portuguesa. Tal nunca foi aceite pelos governos dos Presidentes do Conselho António Salazar e Marcelo Caetano, e pela constituição de 1933, continuando a considerar o território como parte integrante de Portugal. No entanto, essa mesma resolução da ONU veio, todavia a ser aceite pela Lei 7/1974 de 27 de Julho do Conselho da Revolução, na sequência da revolução de 25 de Abril, que demonstrou a aceitação da independência de todos os territórios ultramarinos. Em 1975, no contexto e decisão de proceder à rápida autodeterminação de todas as províncias ultramarinas, Timor Português declarou unilateralmente a independência. Portugal, estava nesta altura a resolver os conflitos nas outras colónias e nunca incluiu Timor devido à distância.

Timor representou o caso mais extremo das encruzilhadas da descolonização portuguesa. Um pequeno território com uma importância meramente simbólica para Portugal, esta ilha partilhada com a Holanda não conheceu a presença de movimentos autonomistas significativos durante os anos cinquenta e sessenta, muito embora a independência da Indonésia tivesse impacto em algumas revoltas nesta colónia. Durante os primeiros meses após a queda do regime ditatorial, nada de especial se passou em Timor, e só em em Novembro de 1974, é que foi nomeado um novo governador, Lemos Pires.

Tinham-se entretanto constituído três partidos locais: a Associação Popular Democrática Timorense (APODETI), favorável à integração na vizinha indonésia; a União Democrática de Timor (UDT), inicialmente favorável a uma associação com Portugal; e a Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETLIN), constituída por jovens independentistas revolucionários, da qual fazia parte o então jovem Xanana Gusmão. Com um processo de transição para a democracia atribulado e uma descolonização em curso, as autoridades da metrópole não deram grande importância a Timor, e o governador Lemos Pires foi tentando gerir o conflito entre os três partidos, particularmente importantes, quanto as forças armadas eram, na sua maioria, recrutadas localmente. Em Junho de 1975, decidiu-se realizar uma cimeira com os três movimentos, recusada pela FRETLIN e UDT. Os primeiros conflitos violentos estalaram em finais de Julho, e em Agosto começaram a sair refugiados do território. Das várias conversações entre portugueses e indonésios, e a preparação política pelo poderoso vizinho, a FRETILIN proclamou a independência de Timor a 28 de Novembro de 1975. No mesmo dia, a UDT e APODETI proclamaram a associação com a Indonésia, que invadiu Timor poucas semanas depois, sob ordem de Suharto, presidente da Indonésia. Portugal não reconheceu nem a independência nem a ocupação indonésia, retirando-se, no dia seguinte à invasão. O governo português cortou então relações diplomáticas com a Indonésia e recorreu para as Nações Unidas, que continuaram a reconhecer Portugal como país administrante de um território não-autónomo.

A bandeira de Timor-Leste

Após a invasão de Timor e posterior anexação como 27ª província da Indonésia, a 15 de Julho de 1976, muitos timorenses sentiram-se oprimidos e foram mortos por questões políticas. Timor-Leste entrou, deste modo numa nova fase da sua história, sangrenta, que deixou marcas culturais e sociais muito profundas, iniciando-se uma ruptura com o passado português. O português foi proibido e o bahasa indonésio foi instituído como a língua oficial. Em poucos anos, o bahasa indonésio disseminou-se de forma rápida e eficaz, alicerçando-se no programa de ensino promovido pela administração do governo local, nos anos 80. No entanto, os indonésios nunca apagaram por completo a presença simbólica portuguesa, representada nos monumentos que se encontravam espalhados pelo território e nas estruturas históricas arquitectónicas que actualmente ainda perduram. A língua portuguesa, apesar de proibida e apenas falada por uma minoria da população, assumiu-se como uma importante arma para a resistência ao invasor indonésio. Também a religião católica assumiu um papel relevante, contribuindo para a construção de um sentimento nacional e identitário. Em 1989, o Papa João Paulo II, visitou Timor-Leste, trazendo esperança e conforto, acontecimento que colocou o país na agenda internacional.

Em Outubro de 1991, uma delegação com membros do Parlamento Português e 12 jornalistas planeavam visitar o território de Timor Leste durante a visita do Representante Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Pieter Kooijmans. No entanto, a visita acabou por ser cancelada, aumentando a tensão entre militares e a juventude resistente, criando o incidente em que foi assassinado o jovem Sebastião Gomes, um jovem membro da resistência timorense. O cortejo fúnebre que ocorreu posteriormente em sua homenagem, culminou num massacre que viria a ficar conhecido por “Massacre de Santa Cruz”, (nome do cemitério) no dia 12 de Novembro de 1991. Este acontecimento dizimou mais de 250 pessoas. Foram as imagens filmadas e os testemunhos de três jornalistas, o britânico Max Stahl e os americanos Amy Goodman e Allan Nairn, que trouxeram aos televisores ocidentais o horror espelhado nos rostos dos sobreviventes escondidos entre as campas do cemitério. Estas imagens vieram subitamente acordar Portugal e o Mundo, desencadeando um assomo de responsabilidade colectiva que galvanizou os portugueses, e obrigou os mais cínicos na política e na diplomacia a assumirem responsabilidades. A partir de então, despoletou-se uma inteligente ofensiva diplomática no quadro europeu, indispensavelmente articulada com a admirável Resistência timorense que conseguiu unir-se na estratégia política. Xanana Gusmão aproveitou esse acontecimento para se envolver na diplomacia e chamar a atenção do mundo para o que se passava em Timor. E com isso, converteu-se num alvo do governo indonésio. Foi capturado em Novembro de 1992, julgado e condenado a prisão perpétua, em Jacarta. Viveu sete anos de clausura, até ser libertado em fins de 1999, por uma força de pacificação da ONU, maioritariamente composta por australianos. A ONU assumiu aqui um papel de relevo, tendo administrado provisoriamente o território até 2002, sob a missão intitulada de UNTAET (United Nations Transitional Adminsitration in East Timor), que contou com o envolvimento militares, polícias e funcionários civis de vários países membros desta Organização.

Para além disso, a ONU convidou Xanana Gusmão para partilhar a condução do destino de Timor, após o referendo popular realizado em 30 de Agosto de 1999. Referendo através do qual, a população rejeitou a autonomia proposta pela Indonésia, escolhendo assim a independência formal. Após o referendo, que lhe granjeou a sua independência, passou novamente a ser denominada “Timor Lorasae” em língua tétum e “Timor-Leste” em língua portuguesa.

Eu só me comecei a aperceber da existência de Timor e dos acontecimentos inerentes, quando através da televisão, chegou a música interpretada por Luís Represas, Timor. Eu tinha os meus nove, dez anos na altura. Curiosamente, eu e mais um grupo de colegas no 5º ano, na disciplina de Área de Projecto, tivemos de encenar uma situação no enquadramento dos tumultos vividos em Timor. A mim calhou-me representar uma timorense atingida no conflito. É caso para dizer que passei ao lado de uma carreira de actriz.  

Mas voltando à música, há qualquer coisa em si, que ainda hoje, ao ouvi-la me faz estremecer. Da autoria dos Trovante, uma das bandas mais marcantes do pop-rock português, fundada em 1976 por João Gil e Luís Represas, o tema remonta a 1988, quando João Gil compôs um instrumental com um coro cantado em tétum, língua nativa timorense, para um filme. E rapidamente, o instrumental transformou-se num despertador de consciência e hino da liberdade.

Em 2000, Timor ainda era um verdadeiro barril de pólvora. Além dos soldados que ostentavam a bandeira nacional no ombro, professores, jornalistas e voluntários foram outras classes portuguesas presentes no território.

No dia 20 de maio de 2002, foi proclamada a independência da República Democrática de Timor-Leste e foi nessa mesma data que, se assinalou a sua adesão como oitavo país membro à CPLP (Comunidade de País Língua Portuguesa). Assim, Timor-Leste tornou-se a mais recente democracia do mundo e o primeiro país do terceiro milénio. As celebrações tiveram lugar em Díli. A 27 de Setembro de 2002, Timor-Leste passou a integrar a ONU como 191º estado-membro. Não é fácil um país fazer uma transição para a democracia quando viveu sufocado durante mais de vinte de anos por um regime brutal. Entre 2006 e 2008, conflitos internos voltaram a ameaçar a paz no país, fazendo com que as forças da ONU retornassem e permitissem eleições presidenciais e parlamentares em 2007.

Em 11 de Abril de 2012, entrou em vigor um decreto que estabeleceu o Acordo de Cooperação entre a República Portuguesa e a República Democrática de Timor-Leste em matéria de segurança interna, assinado em Lisboa, em 27 de Setembro de 2011, pelo então Ministro da Administração Interna, Miguel Macedo e por Xanana Gusmão, na altura Primeiro-ministro e Ministro da Defesa e da Segurança, em função do interesse em dar continuidade, pela via bilateral, a acções que visam à formação e capacitação das forças de segurança timorenses. Um acordo que se insere no âmbito dos esforços tendentes a reforçar a componente bilateral da cooperação numa área estruturante do Estado de Direito como é a da segurança interna. A participação de forças e serviços de segurança portugueses em Timor, reafirmou o vector de segurança e de compromisso para com Timor. Actualmente, com uma população de cerca de 1,2 milhões de habitantes, o país apresenta uma situação política e de segurança calma e estável, apesar de recentemente se terem verificado algumas manifestações em Díli junto ao Parlamento Nacional e Universidade Nacional.

Também o ensino do português constituiu, e continua a constituir, uma componente bastante importante, sendo uma das línguas oficiais, para além do tétum, desde 2002. O uso da língua portuguesa, como instrumento de escolaridade e de formação, no âmbito da cooperação, esteve subjacente ao protocolo assinado entre a República Portuguesa e a República Democrática de Timor-Leste, em 16 de Abril de 2010. Acordou-se que, nessas escolas, seria leccionado o currículo nacional de Timor-Leste em língua portuguesa, usando os manuais escolares em vigor. Foi contemplado igualmente uma componente de formação, uma vez que permitiam aos docentes timorenses a realização de estágio com vista ao ingresso na carreira docente daquele país. Todo este processo desenrolou-se e tem vindo a desenvolver-se através do Instituto Camões, onde são muitos os professores que se candidatam, e são posteriormente seleccionados.

Sem querer romancear mas aproveitando a deixa, neste contexto da independência de Timor e consequente reconstrução, alguns os homens e mulheres acabaram por se conhecer e casar. Há alguns anos, conheci por mero acaso um agente da Polícia de Segurança Pública e uma professora de português, cujos percursos profissionais os levaram a Timor e a conhecerem-se. Até brincámos com a situação “foi preciso conhecerem-se no outro lado do mundo e voltarem casados a Portugal!!”. Acredito que não tenham sido os únicos a quem este conflito tenha dado a possibilidade dos seus destinos se cruzarem.

Para terminar, sem me querer alongar muito mais, é importante ressalvar que foi preciso fazer frente a várias vozes que negavam a viabilidade da independência da meia-ilha de Timor. O país que vemos hoje, muito jovem e ainda frágil, a recuperar das feridas passadas que perduram na memória colectiva, vem contrariando essa posição. Tem encetado o seu caminho, passo a passo, com muitas batalhas essenciais da governação democrática ainda por vencer, mas com a concretização desses sonhos, firmemente nas mãos dos timorenses. Passaram-se dezasseis anos de autonomia. Timor-Leste hoje dá esperança a outros povos ainda atormentados pela guerra e opressão noutras áreas do globo. A nós, portugueses, é motivo para nos dar orgulho.

Di’ak lae?*

*Expressão tétum, que em português significa “Bom dia, como estás?” e que é a mais usada quando se chega ao país, de maneira a estreitar afinidade entre os nativos e os visitantes. Muito usada pelos portugueses que lá estiveram em missão.