Natal: tudo isto e todos os dias ?

Neste Natal convido-vos a olharem  esta fotografia. Pensarão certamente que já viram muitas como esta, se calhar até piores do que esta. Mais mediáticas. Mais agressivas, com crianças mortas e cenas macabras. Provavelmente sim. Mas, ainda assim, convido-vos a olhar para esta. Natal: tudo isto e todos os dias ?

Há nela, como em muitas outras, algo de particularmente doloroso e silencioso. Como aquele inaudível silêncio que ocorre após o naufrágio de um navio. O momento em que a morte se instalou e ninguém já consegue gritar ou chorar sequer.

Impressionou-me o êxodo. A multidão que caminha por entre destroços. A cidade desventrada. As pessoas. O mar de pessoas. O que devem pensar. E sobretudo o que devem sentir!

Natal: tudo isto e todos os dias ?

Estes destroços trouxeram-me à memória Berlim e a igreja Kaiser Wilhelm Memorial, parcialmente destruída por uma bomba em 1943 e mantida em ruínas – para que o povo nunca esquecesse os efeitos de uma guerra. Recordo-me exactamente como se fosse hoje, daquilo que aí senti, particularmente no interior desta magnífica igreja. (Um dia hei-de escrever sobre isto. Sobre a igreja de Berlim e a magnífica anciã de olhos profundamente azuis. Mas não agora! )

Naquele momento – e em momentos futuros e que se repetem até hoje – agradeci (e agradeço) por nunca ter estado presente numa guerra, nunca a ter vislumbrado ou sofrido com as suas cicatrizes. Sou grata, profundamente grata por nunca ter sentido o horror – que não imagino – de bombas e balas e armas e morte e ruído e tudo aquilo que está subjacente a qualquer ataque bélico.

Não concebo sequer a perspectiva do prédio onde vivo em ruínas – muito menos de cidades e cidades. E o país. Não! Não consigo! Talvez tivessem à espera de uma crónica com um presépio, ou uma árvore iluminada e um pai natal gordo. Mas não consigo!

Para mim, o natal não é nada disto. É amor genuíno e verdadeiro. Uns pelos outros, considerando as maravilhosas diferenças que nos tornam um mosaico tão extraordinário.

É não ter que ouvir conversas no café sobre os “outros” que são menos do que “nós” – porque são refugiados. Porque entre eles vêm os terroristas, os criminosos, os fundamentalistas – todo o universo de medos que ensinaram as pessoas a ter – para os poder controlar melhor. É o efeito da segurança com contrapartida. É o mundo panóptico, o grande “olho do poder” entre nós, o 1984 Orwelliano. É o medo; é o medo que medo acabe, como dizia Mia Couto.

Para mim, o natal não é nada disto. É amar indiscriminadamente. Os adultos. As crianças. Os animais. A natureza. Tudo aquilo que aqui está para nosso usufruto. E que tão mal tratamos. Natal é tudo isto e todos os dias. Portanto, não posso compactuar com luzes e árvores, e pais natais gordos, carregados de presentes. Porque há crianças que não vão ter natal. Não têm natal. E mesmo que não sejam cristãs, não há natal nos seus lares, nem nos seus corações.

Porque todas as crianças do mundo são nossos filhos. Indistintamente. Temos o dever de as proteger! É essa a ordem fraterna entre seres humanos. E não aceito menos do que isto! E enquanto assim não for, não há verdadeiros natais. Não para mim!