Folha arrancada ao diário

Querido diário:

Decidi numerar-te as páginas e descobri que já vou nas cento e noventa e cinco apesar de ter-te começado a escrever no início deste ano.

Nessa altura, não supunha que houvesse tantas coisas que valesse a pena contar do meu dia-a-dia, como motivos para querer rapidamente passar da adolescência à idade adulta. Creio que no dia em que isso aconteça hei-de, em lugar de continuar a relatar sobre o que me aconteceu, passar a escrever acerca do que quero que aconteça e é o seguinte: comprar uma casa, um carro, acabar um curso e arranjar um emprego, casar e poder dar livremente umas quecas sem pedir consentimentos aos meus pais, mas não necessariamente por esta ordem.

Devo ser a única virgem da minha turma no nono ano que faz anos em março. Havia a Beatriz Virgínia. Tinha um ar de sonsa que me deixava tranquila porque achava que nem dali a dez anos ela conseguiria um namorado que a fizesse sentir-me criança do que quando aos três anos de idade enrolava a cara numa fralda para dormir.

De nariz empinado e óculos de armação de massa com lentes de fundo de garrafa, que eram a sua imagem de marca, era a marrona da turma e desde que namorava há dois meses é que exibia um sorriso de felicidade suprema, embora as excelentes notas que já tirava antes de conhecê-lo lhe bastassem para ingressar no curso de medicina que era, dos que havia disponíveis, o que mais ambicionava.

Para colmatar a ausência do irmão que no novo ano letivo mudara de escola, arranjou aquele namorado com quem, além de passar a trocar beijos iguais às lambidelas de uma gata no cio, pôde, agora com a anuência dele, continuar a falar mal das restantes raparigas da turma.

Não que alguma vez me tenha afetado, nunca terem sobressaído as minhas notas ao ponto de em primeiro lugar ter reparado em mim. Era um bronco e talvez por eu ter um Bom a Português, pensasse que entenderia a sua letra ilegível ou percebesse os palavrões que pronunciava quando alguém o chateava. E por ter Não Satisfaz a matemática talvez achasse que era suficiente burra para deixá-lo sentar-se ao meu lado e copiar nos testes de Geografia a que eu era muito melhor aluna.

De resto, não preciso dele para nada. Há dois ou três rapazes da minha idade que podem interessar-me, tanto como continuar a sentar-me ao lado da Carmen que é amiga de um deles. Sei apenas que se chama Roberto Carlos, mas não desfruta da fama de rapaz bem-comportado do cantor quando tinha a idade dele, em que apesar de usar o cabelo pelos ombros e ter um ar rebelde, tinha o inconveniente de cantar e compor umas musiquinhas foleiras de que até a minha avó gostava.

Deves recordar-te, querido confidente, de nas tuas páginas ter escrito que no outro dia, ao passar por mim, demorou a piscar-me o olho como se fosse daquelas pessoas que enxergam sem ver e até pedem ao parceiro para, no momento em que se vão deitar, apagar a luz do quarto porque veem melhor o seu corpo às escuras. Fiquei hoje a saber que passou a tarde no hospital, porque apareceu com a vista entrapada como se o pai de uma colega lhe tivesse dado um soco em cheio por se ter metido com a filha e essa menina fosse eu.

Digo-te isto porque como sabes o meu pai é o homem mais forte e destemido do mundo. É forte como um touro, teimoso como um carneiro, mas meigo como um cordeiro e generoso como um cavalo, porque nunca se queixava de carregar pacientemente às costas uma mulher do calibre da minha mãe.

É uma excelente pessoa mas não demonstra a mesma apetência da tua parte para ouvir sem queixas os meus desabafos. Tivesse ela um décimo da tua paciência para mim e a nossa relação seria menos tumultuosa do que o efeito das ondas de choque provocadas pelo ribombar de um trovão no interior de uma cabina telefónica.

Nunca demonstrou essa apetência para que me bastasse ouvi-la dar-me conselhos que dispensariam a necessidade de descarregar emoções num livro, embora isso me traga vantagens como a de não me arriscar a ouvi-la repreender-me por considerar que “certos assuntos não são para andar na boca de uma menina da minha idade.”.

FIM

Caros leitores,

nas 12 passas para o novo ano, não de esqueçam de formular um pedido especial, o de manterem viva ou reanimarem a criança que existe dentro de vós.

Festas felizes