Guild Wars, Uma Retrospectiva

Em 2004, World of Warcraft tinha sido lançado para o mercado depois de anos de antecipação para todos os fãs da franquia. Até os seus próprios servers não estavam preparados para tamanha aderência por parte dos jogadores, ao ponto da empresa ter de deixar de comercializar o jogo enquanto aumentava a sua capacidade. A definição de MMORPG (Massively multiplayer online role-playing game) estava para sempre sobre a alçada de um novo monstro, que continua até hoje, com nova expansão a caminho 14 anos depois, Battle for Azeroth, sem grandes sinais de abrandamento, especialmente depois do sucesso de Legion.

Um ano antes de sair a primeira expansão de WoW, The Burning Crusade, e para um rapaz de 14 anos como eu, o gigante da Blizzard era uma miragem, mas também um videojogo muito cobiçado. Maravilhado com as horas que desfrutava ainda na versão vanilla de WoW, fazendo as várias quests iniciais de Elwynn Forest e Westfall na conta do meu primo durante o verão de 2006, tinha um problema pela frente. Era inconcebível para os meus pais alguém pagar 14 euros pela mensalidade de um jogo, e com a minha tenra idade só tinha de acartar com o peso dessa decisão. Incompreendido, precisava de um jogo online que me fizesse esquecer World of Warcraft e a resposta estava noutro campo, mais acessível, numa era onde o free-to-play MMO ainda não tinha manifestado toda a sua força e popularidade. A alternativa já se encontrava no mercado, mas só teria contacto com ela um ano depois. A barreira monetária aplicada pelos meus pais, e a recomendação do meu primo, tinha-me catapultado na direcção de uma experiência diferente e recompensadora.

Esta crónica é o inicio de um conjunto de futuras abordagens aos videojogos que marcaram a minha vida, e a de várias pessoas em todo o mundo. É reconhecimento da sua qualidade, mas também uma viagem ao passado, com nostalgia e emoção à mistura, sem esquecer o olhar crítico de uma mente mais madura. Nesta primeira viagem a memory lane, e comprado no verão de 2007, está Guild Wars, criado pela ArenaNet, e a partir desse momento, a minha vida nunca mais seria a mesma… 

Na era dos CDs, a edição de Guild Wars era, e continua a ser, umas das caixas mais pesadas que possuo. Juntamente com os dois CDs para a instalação do jogo encontra-se, também, um poster, com dois lados, que ficou no meu quarto durante uma década devidamente anexado à parede do armário, e dois pequenos volumes entitulados de Guild Wars Manuscripts, o Book I dedicado à lore da franquia, e o Book II entitulado The Challenge, com os diversos conteúdos do jogo, incluindo descrições para classes, e como se processam muitas das mecânicas. Esta ainda é a era dos manuais de instruções e cada um dos mesmos está recheado de artwork. Esta edição traz também algo que não tem preço, a música original do jogo, de nem mais nada menos que Jeremy Soule, o John Williams dos videojogos, já com cartas dadas na altura por Morrowind Icewind Dale, e Star Wars Knight of the Old Republic. Esta edição não é certamente a primeira de Guild Wars, e isso está bem explicito na caixa, “Mais de 1 Milhão de Jogadores em Todo o Mundo”. Os bónus são uma óptima adição que deixaram a sua marca e que ainda hoje, depois tantos anos, estão cheios de recordações.

Mas o que era de facto Guild Wars? Em boa medida era diferente do que poderíamos esperar de um MMORPG, no sentido em que não era um MMO! Isto pode ser chocante para um jogo que certamente foi vendido, ou pelo menos passou a ideia de que o poderia ser até para quem os jogava. No entanto, é a diferença que fez com que sobrevivesse e, de certo modo, o que lhe deu força para continuar como franquia, mesmo que neste momento os servers estejam praticamente vazios. A primeira ruptura com um MMORPG era que os jogadores só se encontravam nas cidades e vilas, ou seja, nos player hubs. Fora desses pontos haviam áreas consideráveis que exigiam loading, ou seja, não era um mundo persistente. Ao entrar nessas áreas só eram permitidos até 8 personagens. O jogador podia levar amigos ou outros jogadores com os mesmos objectivos para essas áreas, ou optar pelos henchmen, NPCs (personagens não jogáveis) que adoptavam o seu papel na party, fosse ele tank, healer, ou dps. A AI era por vezes bastante falível e o jogador não tinha nenhum controlo sobre os skills destes auxiliares. Apenas com a segunda “expansão”, Guild Wars: Nightfall os jogadores foram introduzidos aos heroes, NPCs com skills que podiam ser completamente alterados. Isto seria fabuloso, porque permitia um conjunto de builds que fariam ao jogador depender menos de outros jogadores quando o conteúdo era mais difícil.

As zonas já referidas tinham quests como qualquer outro RPG, com pontos de interrogação e exclamação, e todos os clichés, ainda modernos. Mas Guild Wars era também muito mais centrado na sua história do que a oferta online da altura. Muitos dos hubs eram o preludio para uma missão importante, que se regia pelos mesmas características de outras zonas, e permitiam ao jogador avançar com a narrativa, e também progredir para as zonas seguintes. E variedade nestas zonas não faltava, e a importância do jogador nos acontecimentos era mais focada.

A criação de personagem era um pouco reduzida em termos de raças, só havia uma, os humanos! Mas para compensar existiam inicialmente seis classes, que passaram com as campanhas seguintes a ser dez. Embora muitas cumprissem os já normais papeis na trilogia sagrada dos RPGs algumas eram bastante originais, por exemplo o Mesmer, com as suas ilusões e truques quase teatrais. Melhor ainda era que a classe inicial era seguida já durante o jogo pela escolha de uma classe secundária. Esta era à escolha de qualquer uma das outras disponíveis, com resultados variados. Warrior com Necromancer? Elementalist com Monk? Todas as combinações eram possíveis, embora a segunda classe perdesse algumas das suas habilidades básicas, porque era isso mesmo, uma classe secundária.

Para a era em que se enquadra a costumização visual era razoável, especialmente tendo em conta outras ofertas. Era possível mudar a altura da personagem, e escolher uma combinação penteado com uma cara. Desactualizado para os padrões actuais, mas muito comum na altura! Era também possível dar dois nomes a uma personagem, algo pouco visto ainda hoje mas que contribuía de forma flagrante para que ninguém tivesse o mesmo nome. Infelizmente, sem grande originalidade fiz o pior que podia ser feito. O meu ranger, o que poderemos apelidar de hunter ou arqueiro noutro jogos foi chamado por mim de Luís Antunes… Exacto! Mas para piorar a situação e percebendo que desde esse momento seria o Antunes para todas as guilds portuguesas, resolvi manter o nome para todas personagens. Todas, mas mesmo todas as personagens tinham como último nome Antunes, por mais estapafúrdio que isto possa parecer agora, naquela altura não me chateou um bocadinho, até começar a perceber que podia ter tido mais originalidade e que me poderia ter distanciado do meu nome para manter uma persona e uma personagem muito mais ligada ao role-playing. 

Mas retomando a importância da personagem do jogador. A história da primeira campanha de Guild Wars, intitulada de Prophecies, começava num lugar idílico, em Ascalon, um reino humano afectado pela ameaça dos Char, umas criaturas felinas sentientes com um plano “nuclear” para o reino humano, convenientemente contidas atrás de uma gigante muralha de pedra (ainda Donald Trump era uma miragem impossível na presidência dos EUA). Embora a zona de tutorial fosse o paraíso em termos artísticos, e pudesse ser apressada ou não consoante as prioridades do jogador, havia algum mérito para quem deixasse o jogo fluir. Havia inclusive um achievement, o lendário Defender of Ascalon, para quem não saísse da zona até ao nível 20, o nível máximo em Guild Wars. Embora pareça um nível pequeno, não se desenganem, embora não demorasse tanto como noutros RPGs online tentar esta proeza em Ascalon Pre-Searing (o nome dado a esta zona inicial) demorava meses, porque depois das quests acabarem tudo se baseava em matar criaturas, e através de uma quest diária que não dava o suficiente para apressar muito o processo.

Quando a zona de Pre-Searing era completada o mundo expandia e a história progredia. Os Char tinham usado uma arma mágica para destruir a muralha do reino de Ascalon com uma chuva de fogo, mas no processo arrasaram toda a região. Dois anos depois, as marcas deixadas por esta arma “mágico-nuclear” transformaram o reino numa ruína à mercê do inimigo. A esperança dos habitantes do reino de Ascalon, invadido pelos Char, é desistir temporariamente da sua terra e rumar a Oeste, para o reino de Kryta de forma a reagrupar e a obter auxilio. No entanto, há relutância por parte do seu rei, Adelbern. A liderar a fuga está o seu filho Rurik que decide levar uma parte do seu povo para uma perigosa travessia. Este é apenas o inicio de uma enorme história, num mundo onde os problemas do reino de Ascalon são apenas uma parte do problema. Das Shiverpeak Mountains às Fire Islands, passando por Kryta, a Maguuma Jungle, e o Crystal Desert, a história é um dos pontos fortes sempre com problemáticas em escala ascendente até ao confronto final, com o Undead Lich.

A história seria expandida de forma particular. Duas grandes overdoses de conteúdo apareceriam nos anos seguintes e, contrastando com outros jogos online da altura, Guild Wars Factions e Guild Wars Nightfall lançados em 2006, que leia-se, não eram expansões. Eram histórias diferentes e conteúdo independente e distinto com a sua própria zona geográfica, e uma narrativa onde o jogador poderia começar uma personagem nova, ou transportar uma já existente com as devida progressão já concretizada. Não expandiam o nível máximo, mas adicionavam quatro classes (duas cada), centenas de novos skills para classes novas e existentes, dois continentes inteiros com o seu próprio estilo e cultura, e duas novas campanhas que envolviam cada um com o mesmo detalhe do jogo original. A única real expansão de Guild Wars foi Eye of the North (2007), já focada na passagem de testemunho para Guild Wars 2 (2012) oferecendo conteúdo que unia as três narrativas e continentes.

Mas como era de facto a jogabilidade de Guild Wars? Muito limitada, tendo em conta os padrões de hoje. O nível máximo para algumas pessoas era insuficiente porque não percebiam que a progressão não estava no mero aumento de um número. O sagrado nível 20 era apenas um marco, que demorava o seu tempo, mas nada de problemático ou dispendioso. O verdadeiro progresso estava nas habilidades. Só eram permitidas 9 skills, que só podiam ser mudados nas hubs. E as combinações destes 9 botões eram a diferença entre completar ou não os desafios mais difíceis. Munido das skills da sua classe primária e secundária era possível criar sinergias, ou aproveitar apenas uma habilidade em particular. A liberdade na criação na classe em nada se compara ao que a sequela trouxe, que foi sinceramente a simplificação e a ruína de um dos pontos fortes do original.

As skills também não estavam acessíveis ao jogador logo em primeira mão, especialmente os skills elite, apenas uma podia estar activa de cada vez. Estas habilidades “douradas” tinham grande poder mas era necessário capturá-las a bosses do jogo, muitas vezes em zonas bastante inóspitas. Este facto abria também outra das grandes particularidades, todos os inimigos do jogo usavam exactamente as mesmas classes e as mesmas habilidades disponíveis ao jogador. Para capturar uma habilidade era necessário pagar por uma skill em particular que permitiria essa transmissão. De seguida, era preciso caçar o boss algures num mapa, matá-lo, e activar a habilidade que permitiria absorver esse poder.

Em termos de equipamento, a coisa era também complicada, pois a armadura não caía em nenhum monstro ou boss. Embora as armas fossem recorrentes em vários graus e variedades, cumprindo quase na perfeição o cliché da atribuição de cores do azul ao amarelo e verde, as armaduras tinham de ser trocadas por materiais em vendedores específicos, alguns relacionados com facções em particular. E muitas delas não adicionavam muito a não ser de forma cosmética. E, para isso, era necessário farming de materiais. Conseguir um set completo de armadura era, às vezes, uma demanda enorme de reputações e materiais que ocupava alguns serões, sem nunca parecer injusto em termos de tempo, embora a paciência e a facilidade do set fosse variável.

A capa dos TGSK

Mas falando da comunidade, o segredo para qualquer jogo online estável é a sua persistência, e a sua dedicação é a diferença entre a sobrevivência ou o colapso. Os jogadores de Guild Wars trazem boas memórias, especialmente os pertencentes à comunidade portuguesa. Nos meus primeiros meses de jogo integrava já uma guild para a vida, os Tuga Strikers (TGSK), parte de uma comunidade portuguesa particularmente assídua. A portugalidade de Guild Wars tinha um website próprio cheio de vida onde tudo era discutido, e onde cheguei a depositar conteúdo. Desde entrevistas a informações relevantes, o jogador português tinha um lugar onde encontrar dicas, e outros jogadores com interesses semelhantes. Infelizmente, o gw.pt já não está disponível, o que é uma pena. O Internet Archive parece ter passado ao lado no registo de tão saudoso lugar da Internet!

Curiosas são também as amizades conquistadas em todas as horas de jogo, e doze anos depois algumas mantêm-se pelo Facebook. O líder da guild Tuga Strikers (TGSK), Miguel Ângelo, conhecido por Tuga Mike, fala-nos da sua experiência e da história da guild:

O Guild Wars foi o meu primeiro MMORPG, e na altura nem sabia bem o que estava a comprar. Ao início não entendia nada do jogo, mas tive a sorte de encontrar uma Guild portuguesa onde me juntei e aprendi os básicos. Passado uns tempos convenci alguns amigos a comprar também o jogo, e juntos tornámos a experiência mais divertida. Então decidi criar uma guild própria com as minhas regras. Consegui reunir um grupo de pessoas que jogavam quase todos os dias, e que se entreajudavam. O ambiente era amigável, e tornou o jogo muito mais agradável.
O Guild Wars para mim foi um hobby ao qual dediquei muitas horas, e a Guild que criei, os “Tuga Strikers”, tornou-se num grupo de amigos virtuais que passavam o seu tempo livre a cumprir os objectivos que o jogo propunha, e recolhendo recompensas virtuais à medida que se ia progredindo nestes objectivos. A história do jogo é muito interessante, mas depois de a completar, o objectivo passou a ser tornar o meu personagem mais poderoso, adquirindo armaduras mais protectoras, armas mais fortes, e aprender habilidades mais úteis.  

Foram tempos muito agradáveis, e apesar dos anos terem passado, ainda mantenho contacto com algumas pessoas que conheci no jogo através da Internet. Algumas delas já as conheci pessoalmente, outros apenas falamos pelo Facebook de vez em quando.

Um screenshot sobrevivente da década passada, com alguns membros dos Tuga Strikers no seu Guild Hall

As guilds eram parte integrante de Guild Wars, e a comunidade era particularmente unida, mesmo sem grandes e épicos conteúdos como as enormes raids de World of Warcraft. Haviam, no entanto, desafios como o Underworld, uma zona com quests dificílimas onde os henchmen não podiam entrar (embora os heroes pudessem!) Nesta zona, a morte de toda a party resultava na expulsão de toda a equipa do mapa, sendo necessário recomeçar. Chegar ao fim destas áreas era uma tarefa colossal que culminava com a possibilidade de criar armaduras, e encontrar matérias raros. Em Nightfall, uma zona muito semelhante chamada The Fissure of Woe esperava os jogadores mais combativos.

E claro, o PvP de Guild Wars era uma constante guerra entre guilds. A progressão individual em Player vs Player podia ser feita com personagens criadas para o efeito, que começavam logo a nível 20 mas que não podiam integrar os conteúdos de PvE. Em Factions o desafio foi aumentado, pois alguns player hubs podiam pertencer a guilds especificas, e a constante guerra entre Kurzick e Luxon modificava as áreas de influência no mapa. As guilds tinham também um guild hall que podia ser atacado por outras. As guild halls eram maioritariamente bases com algumas conveniências que podiam ser escolhidas entre um leque de temáticas e localizações, pensando também na dificuldade da zona em questão para os jogadores que pensavam em tudo. Não desfrutei tanto da experiência PvP, mas os Tuga Strikers tinham alguma actividade na área.

No meio da nostalgia há ainda a música! E se no inicio falámos de Jeremy Soule, o que dizer da banda sonora icónica para Guild Wars e da sua facilidade em replicar a sonoridade cultural de cada expansão. Quem jogou Prophecies sabe certamente a emoção de reentrar na zona de Crystal Desert só para ouvir Crystal Oasis. A banda sonora de Soule para Guild Wars é talvez um dos maiores feitos da sua carreira, mesmo com o seu contributo na saga de The Elder Scrolls. Do tema principal de Prophecies, às influências orientais de Factions, ao estrondoso tema de Nightfall, é possível que poucos cheguem a este patamar. As próprias classes tinham o seu tema principal, com destaque para a o Elementalist e o Ranger.

No meio da nostalgia, Guild Wars foi parte de uma era, onde “milhentas” horas foram jogadas. Para muitos, foi a grande experiência online das suas vidas, marcando o suficiente para viver ainda nas suas memórias, num sítio onde muitos poucos jogos conseguiram chegar. Para surpresa das surpresas Guild Wars ainda está activo, sem sinais nem estimativa para ser encerrado. Actualmente, a sua manutenção é feita por dois membros da ArenaNet, que nos tempos livres vão ouvindo ainda algumas das preocupações da comunidade corrigindo sem remexer muito no código ou informando sobre soluções externas. A ArenaNet continua focada em Guild Wars 2, que não deixou, nem deixa, tão grandes memórias, talvez por se ter incorporado no mercado mais vasto dos MMORPGs. No entanto, fica uma experiência que embora ainda esteja acessível, já não é a mesma coisa. Recentemente, voltei a jogar Guild Wars, e ainda se mantêm inalterado, embora desactualizado em muitos aspectos. No entanto, a base de jogadores é escassa e os hubs vazios. Ficam as memórias, e a esperança que alguém um dia possa replicar mecânicas semelhantes num jogo de nova geração.