Uma história de terror na Feira do Livro

Chegou, finalmente, o grande dia. Trezentos e sessenta e cinco dias depois, chegou finalmente o dia por que Alípio tanto ansiava: o dia em que visitaria a Feira do Livro, em Lisboa, onde se sentia a pessoa mais feliz e realizada do mundo. Todos os anos, Alípio tirava um dia de férias para poder visitar a Feira de Livro — de bloco de notas na mão (onde tinha uma lista com os livros em promoção) — sem que nada o pudesse aborrecer ou simplesmente importunar. Aquele era o seu dia. Era o único dia do ano em que fazia questão de não se responsabilizar por nada, nem ninguém.

Alípio era uma pessoa simples, sem muitos estudos, pois tinha como “filosofia de vida” ser autodidacta. Na sua mais honesta opinião, a escola não servia para nada, porque existiam os mais variados tipos de livros de onde ele poderia retirar toda a informação de que necessitasse. E foi o que fez desde muito novo, levando-o a abandonar a escola, abraçar a prática do autodidactismo, ao mesmo tempo que poderia trabalhar e assim adquirir a independência de que tantos adolescentes buscam assim que chegam à idade adulta.. E como tinha poucos estudos, Alípio começou muito novo a trabalhar na construção civil, onde, actualmente com trinta e três anos de vida, continuava a ser o seu único sustento.

Alípio fora casado durante sete anos. Mas apenas no papel, porque Alípio era ateu, e jamais casaria pela igreja. O divórcio chegou após a sua ex-mulher ter ficado saturada de ter como marido um “rato de biblioteca”, como ela fizera questão de mencionar mais que uma vez, durante a audiência em que ambos assinaram os papéis do divórcio. Mas nem tudo foi mau no casamento, visto que, desse casamento, ter resultado o maior orgulho da vida de Alípio: a sua filha Irene, actualmente com seis anos. E que, tal como o pai, também ela já adorava livros. Ainda estava a aprender a ler, mas ficava fascinada com as ilustrações ou simplesmente com a aglomeração de letras e palavras que um livro podia conter.

Alípio preparava-se para sair de casa, quando tocaram à campainha.

— Mas quem será a esta hora. Se calha a ser novamente o homem da MEO, juro que vou buscar o martelo à mala de ferramentas e corro-o à martelada! — disse Alípio, enquanto abotoava os botões da camisa.

Dirigiu-se à porta e, sem hesitar, abriu a porta de uma forma brusca e disse:

— Homem, eu já disse que não estava interessado, porra!

Quando se apercebeu do silêncio desconfortável que pairava no ar, Alípio largou os botões da camisa e levantou vagarosamente a cabeça. À sua frente não estava nenhum vendedor da MEO, mas sim uma mulher e uma menina. Era a sua ex-mulher e a sua filha, Irene.

— Mas… que raio! O que estão a fazer aqui, a esta hora? — disse Alípio.

— Bom dia para ti também! — ripostou a sua ex-mulher. — Que pai responsável tu me saíste! Nem te lembras que hoje é dia de ficares com a tua filha…

— Eu… Eu… Hoje? Mas… Hoje não pode ser… Eu hoje não posso! Hoje vou à Feira do Livro… — respondeu Alípio, prevendo que o seu dia, o tão aguardado dia, estaria a um passo de estar estragado.

— Não pode ser, porquê? Há duas semanas que te ando a avisar que hoje terias de ficar com ela, porque eu vou fazer uma colonoscopia e não a posso levar comigo. Mas, claro, eu já deveria esperar isto de um “rato de biblioteca” como tu. Primeiro os livros, e só depois a própria filha. Tudo bem… Anda Irene, vou deixar-te na tua avó porque o teu querido paizinho desnaturado não pode tomar conta de ti…

Alípio olhou para a sua filha, e os olhos dela pareciam falar com ele. Ela não precisou de proferir qualquer palavra para Alípio perceber que ela não queria ir para a casa da avó, e que preferia ficar com o pai. E aqueles olhos azuis eram, simplesmente, hipnotizadores… Alípio não conseguia dizer não àqueles olhos. Nem mesmo quando isso poderia colocar em causa o seu grande dia. O único dia do ano em que ele se sentia no Paraíso — assim que colocasse os pés no Parque Eduardo VII, e começasse a desbravar a Feira do Livro, numa procura insana pelos livros que tinha já apontado no seu pequeno bloco de notas.

— Mas é claro que eu fico com a minha querida e linda filhota! —disse Alípio, esboçando um pequeno sorriso forçado para a sua filha.

— Hum… Já não sei se é boa ideia… Mas ok, tu és pai dela. Não é mais que a tua obrigação. — A ex-mulher ajoelhou-se e beijou a face da pequena Irene, e disse:

— Vá, filhota, agora ficas com o desnaturado do teu pai, e assim que a mãe puder vem buscar-te, está bem? — Encostou a boca ao ouvido da filha – como se fosse contar-lhe um segredo, mas não se preocupando em falar num tom baixo – e disse:

— Vai tudo correr bem, filhota. Deus irá estar sempre a vigiar-te… Tenho a certeza que ele já enviou um anjo para te guardar…

Alípio, ao ouvir aquelas palavras, não conseguiu evitar um pequeno movimento de cabeça em jeito de reprovação – visto ser ateu, e não acreditar nessas coisas de igreja.

— Ganha juízo, pá. Filha, não ouças as barbaridades que a tua mãe diz… Deus não existe. São como as personagens dos livros: só existem nos livros, são ficção. Pura ficção. Nada mais que isso. — Pegou na filha e puxou-a amavelmente para dentro de casa, fechando a porta na cara da sua ex-mulher, sem sequer se despedir dela. — Filha, queres ir passear? O pai sabe de um sítio de que tu vais gostar imenso.

— Sim, papá. Vamos passear. Vamos ao parque? — disse a pequena Irene.

— Sim, filha, Vamos ao parque… ver livros!

— Livros, papá?! Boa! Boa, papá! — Na mente da pequena Irene, começaram a surgir imagens de livros ilustrados, com variadíssima bonecada e muitas cores.

— Então vamos filha. Vamos divertir-nos à grande!

***

A Feira do Livro estava apinhada de gente. De “ratos de biblioteca” como Alípio. O que, assim, já seriam dois entraves ao que poderia ser um dia de diversão para Alípio; ter de tomar conta da sua pequena Irene, e estar muita gente na Feira do Livro. Mas ele tirara um dia de férias para poder vaguear pela Feira do Livro, em busca dos livros que tinha apontado no seu bloco de notas, e nada o ia demover de tal empreitada. Nem que, de repente, um sismo da magnitude de 7.5 na Escala de Ritcher, assolasse Lisboa naquele dia.

Depois de uma hora à procura de lugar para o carro, Alípio finalmente conseguiu entrar no recinto da Feira do Livro. Ia tão empolgado que, assim que se deu conta, constatou que tinha deixado a sua filha fechada dentro do carro. Voltou atrás a correr, e desejou que a sua ex-mulher não viesse a saber daquele pequeno incidente.

Assim que ambos chegaram ao recinto da Feira do Livro, Alípio ajoelhou-se em frente a Irene, e disse:

— Filha, aconteça o que acontecer, nunca me largues a mão, está bem? Está aqui muita gente, e o pai não quer perder-te. E a tua mãe nunca me iria perdoar… Ou, se calhar, até perdoaria… alegando que “foi tudo obra de Deus” e blá, blá… Combinado?

— Combinado, papá. Mas, papá… compras-me um livro para colorir? — disse Irene, usando os seus olhos azuis hipnotizadores, que ela sabia tão bem usar contra o pai.

— Livro para colorir? Ok, ok… Compro sim. Mas só se me prometeres que nunca vais largar-me a mão, está bem? — disse Alípio, dando de seguida um beijo na testa da filha.

Mas a promessa fora quebrada apenas uns minutos mais tarde. E não por iniciativa da pequena Irene, mas sim por parte de Alípio que, empolgado e empenhado na procura insana pelos livros que constavam na sua extensa lista (minuciosamente apontada no seu bloco de notas), acabou por largar a mão de Irene sem se dar conta disso. E, após regatear o preço de um livro com um funcionário de um dos pavilhões da Feira do Livro – e conseguir levar a sua à avante –, olhou para o lado e não viu Irene. E o seu coração parou. Por breves segundos, Alípio pensou que a sua hora tinha chegado. O coração iria parar e ele nem teria tempo nem oportunidade para ler todos os livros que tinha planeado ler na sua vida.

— Irene! Irene, filha! Irene! — gritou Alípio, na esperança de tudo não passar de uma pequena brincadeira da sua filha. As crianças tinham, por natureza, um espírito irreverente e de certeza que a filha tinha visto algum livro que lhe chamara a atenção, e deveria estar naquele preciso momento num dos pavilhões ali perto.

Passaram-se alguns minutos, e nada de Irene. Alípio vasculhou todos os pavilhões na área onde se encontrava, mas não havia sinal da sua filha em lado nenhum. Perguntara a todos os funcionários dos pavilhões se tinham visto a sua filha, mas ninguém tinha visto Irene em lado nenhum.

“Isto não pode estar a acontecer!”, pensou Alípio. E logo naquele dia, caramba. No dia mais esperado do ano, acontecer tal desgraça. Alípio começou a sentir-se cada vez mais desesperado, pois não conseguia encontrar Irene em lado nenhum. Tentou manter-se calmo e afastar a hipótese de rapto, mas era cada vez mais difícil afastar esse pensamento. A Feira do Livro estava repleta de pessoas, e com certeza seria muito fácil alguém raptar uma criança, sem que ninguém desse conta de tal.

Perguntou a vários seguranças que patrulhavam a Feira do Livro ou que guardavam os pavilhões das principais Editoras, mas nenhum deles tinha visto uma criança com a fisionomia de Irene. Mas ao menos, propuseram-se a ajudar, comunicando uns com os outros através dos walkie-talkies, para tentarem encontrar Irene. Alípio até enviou uma fotografia de Irene para o telemóvel de um segurança, que fez circular por todos os colegas para assim ajudar a encontrar Irene o mais rapidamente possível.

Mas nada. Ninguém sabia de nada. Ninguém tinha visto nada. Ninguém vira tal criança. Alípio pensou que, provavelmente, Irene sentindo-se perdida, talvez tivesse regressado ao local onde o carro estava estacionado. Deslocou-se a correr até ao carro, mas não havia sinal de que Irene estivesse lá estado sequer.

Regressou para o recinto da Feira do Livro, e voltou a vasculhar todos os pavilhões desde o Auditório APEL até ao Palco Central — de uma ponta a outra do recinto —, mas não havia sinal de Irene. Ela tinha simplesmente desaparecido. Como se se tivesse evaporado de um momento para o outro…

Alípio correu a Feira do Livro de uma ponta à outra durante horas. Vasculhou pavilhão a pavilhão, mas ninguém tinha visto Irene. A noite chegou, e Alípio, já cansado e amargurado, sentiu-se a desistir. Começou finalmente a aceitar o terrível desfecho que já se adivinhava há horas, mas que ele tentou afastar o mais tempo possível: a sua filha tinha sido raptada. E era muito provável que nunca mais a voltasse a ver… E o único pensamento que assombrava a mente de Alípio era: “Como é que se explica a uma mãe que a sua filha foi raptada e que a culpa foi toda do pai?”

Alípio parou. Parou simplesmente de andar. Colocou as mãos nos joelhos, e começou a arfar de cansaço. Tinham-se passado horas, e ele estava exausto. E então começou a chorar. A princípio, a medo, com alguma vergonha por estar a chorar. Mas depois soltou-se, e desatou a chorar compulsivamente. Esteve algum tempo naquela situação e, então, como se alguém lhe tivesse dado uma injecção de coragem ou perseverança, Alípio recompôs-se, limpou as lágrimas da cara e voltou à carga. Não podia desistir assim tão facilmente, caramba. Era a sua filha. A sua Irene de olhos azuis, que o deixavam hipnotizado só de olhar para eles. Ela era, de facto, o seu maior feito. O seu maior orgulho. Não podia desaparecer assim, sem mais nem menos. Não era justo. E então, num acto que considerou puramente de desespero, fez aquilo que pensou nunca fazer na vida: começou a pedir a Deus, para que o ajudasse a encontrar a sua filha. Já não lhe interessava ser ateu. Ele só queria ter a sua Irene de volta. Existindo, ou não, um Deus, ele teria de pedir a todos os seres para que o ajudassem a encontrar a sua querida filha. E então pediu a Deus. Pediu a Jesus. Pediu a todos os anjos. Só não rezou porque como era ateu e nunca se interessou pela religião cristã, nunca o tinha aprendido a fazer.

E então… olhou em frente e a primeira coisa que lhe chamou à atenção, foi o “livro do dia” que o pavilhão que estava à sua frente tinha em exposição: “A Bíblia Sagrada Para Crianças”. E, ao lado do pavilhão, estava um grupo de cadeiras à volta de uma mesa comprida e oval. Deveria ser um local onde os autores poderiam apresentar os seus livros. E numa das cadeiras estava uma menina loira de olhos azuis e… hipnotizadores!

— Irene! — gritou Alípio, sem se conseguir mover do sítio de onde estava, a sensivelmente dez metros da sua filha. Estava tão cansado que nem conseguia andar, mas alguns segundos depois lá conseguiu mover as pernas e correr para a sua filha. Talvez não fosse cansaço que o impedira de se mover, mas sim a surpresa de ver finalmente a sua filha ali, tão perto dele e bem de saúde, depois de tantas horas à sua procura.

— Irene, minha filha! — abraçou a filha com tanta veemência que nem se apercebeu que estava quase a sufocar a própria filha. — Onde é que te meteste filha, que estou há horas à tua procura?! Pensava que te tinha perdido para sempre, filha… Estava desesperado…

— Eu estive sempre aqui, papá. A ler este livro muito giro e cheio de ilustrações. Olha esta aqui, papá: é um homem pregado a uma cruz, e diz aqui que se chama Jesus. É o filho de Deus, papá. Será o tal Deus a que a mamã me obriga a rezar todas as noites, antes de dormir? E sabias que, o Diabo, afinal de contas, já foi um anjo bom, papá? Está tudo aqui, neste livro…

Alípio sentou-se ao lado da filha, pegou no livro e fechou-o para ver a capa. Chamava-se “A Bíblia Sagrada Para Crianças”… Olhou para a filha, abanou a cabeça e disse:

— Isto tem de acabar de uma vez por todas! A culpa do que se passou hoje é toda da tua mãe, que te anda a enfiar essas baboseiras sobre Deus, Jesus e o Diabo na tua cabecinha. Eu já te disse que eles não existem! São apenas personagens de livros!

— Papá… Mas a mamã diz que Deus existe… e que, quando morremos, vamos ter com ele ao Paraíso…

— Deixa-te de baboseiras! Deus não existe! É ficção!

— Existe sim, papá… e a mãe diz que… quando falamos mal…

Nisto, um dos pés da cadeira de Alípio partiu-se, e ele caiu de rabo no chão, proferindo de imediato um ligeiro impropério de descontentamento. Olhou para a sua filha, e disse:

— … quando falamos mal…?

Irene esboçou um pequeno sorriso e disse:

— … que Deus castiga, papá!

Alípio sorriu para a filha, de seguida olhou para o céu e exclamou:

— Obrigadinho, ó!

FIM