O preço do elitismo

Entre os diversos equívocos que caracterizam o Partido Socialista português, de que o hibridismo contra-natura de juntar socialistas laicos com católicos convictos é uma das expressões mais caricatas, um tem sido indisfarçável nos últimos meses: a clara separação entre a elite socialista lisboeta (ou que tem o centro da sua actividade nesta cidade) e as bases espalhadas pelo país, e que constituem, na realidade, o alicerce da sua representatividade.

Um dos primeiros episódios recentes deste equívoco foi a inaudita sabotagem praticada pelo seu confesso eterno líder, Mário Soares, que nunca pretendeu realmente o abandono dos comandos do partido. Mais presente a espaços, mais ausente em determinadas circunstâncias, Mário Soares é a face visível da aversão da elite socialista à concretização da ambição de António José Seguro, representante desse “resto do país” que é útil a essa elite no dia da votação, mas que se espera que se mantenha quedo e mudo nos restantes 364 dias do ano.

Foi, na realidade, a esse elite – e a Mário Soares enquanto expoente dela – que ficou a dever-se a imposição da recusa do acordo proposto pelo Presidente da República, um acordo que garantia a António José Seguro, à data líder de legitimidade apenas surdamente questionada, o lugar de Primeiro-Ministro. Já nessa altura o plano da elite do PS era outro: o de tolerar António José Seguro num lugar que apenas pretendiam que “aquecesse” enquanto o predestinado delfim, António Costa, se poupava à imensa maçada que constituia ser oposição nacional ou ter sequer ideias que justificassem a sua eleição.

Assim, e no que deve constituir um caso paradigmático de sabotagem política interna, Soares garantiu nessa altura o necessário balão de oxigénio para António Costa, mesmo que isso acarretasse que o PS não fosse Governo já em 2014. Para quem diz defender os interesses do partido a que chama “seu”, digamos que é, com todas as letras, uma “filha-de-putice” degradante. Para esta elite socialista, António José Seguro nunca será um dos “seus”, proveniente desse país “estranho” que é o “Portugal fora de Lisboa”: isto mesmo é visível nas palavras de António Costa, quando afirma que “de facto esta minha candidatura é um reencontro do PS com a sua identidade histórica“. Uma identidade, arrisco, à qual a existência do resto do país não é apenas estranha, mas muito pouco bem-vinda.

O equívoco actual do PS é outro: a um pré-aclamado e arrasador candidato a candidato foi, afinal, necessário oferecer publicamente o apoio dos chamados “notáveis”. Não deixando de ser curioso que um partido que se apresenta como Socialista se sinta tão confortável com a ideia de uma aristocracia interna, tal elite teve de sujeitar-se a afirmar esse apoio num contexto em que, afinal, começavam a ser visíveis brechas assinaláveis no verniz da incontornabilidade de António Costa como líder.

Como a escolha das palavras nunca é inocente, merecendo ser analisadas enquanto veículo das nossas posições, vale a pena reter que este apoio foi cristalizado nos seguintes termos: a candidatura de António Costa tem o que é necessário para ganhar as eleições. Ou seja, não as ideias de AC, não a estratégia de AC, mas a sua figura. A mais que evidente ausência de pensamento estruturado de António Costa não é problema. O que assim se desenha é a declarada cedência ao mais puro populismo, desde que eleitoralmente eficaz. O mesmo que grangeou tão bons resultados a… Marinho Pinto. O PS destes aristocamaradas apoiaria, com a mesma facilidade, um organismo unicelular se o mesmo garantisse o seu regresso ao poder.

Cereja no topo do bolo dos equívocos? Esta frase fantástica de António Costa: “A unidade desejada pelos militantes não é algo que se decrete“. Tem toda a razão, mas não no que esperaria ter: o golpe ao cargo de Secretário-Geral que AC, com o apoio dessa elite, orquestrou há mais de um ano não é um decreto ao qual os militantes do resto do país se sentem vinculados. Porquê? Os mesmos que consideraram pequeninaa votação mais expressiva do PS nas eleições europeias – por comparação à de PSD e CDS juntos – não conseguiram este fim-de-semana, em eleições para as federações distritais socialistas, a vitória arrasadora que a predestinação divina de António Costa e o apoio da elite aristocrata do partido consideravam assegurada: António Costa apenas somou 56% das ditas federações, para 44% das candidaturas próximas de António José Seguro. Para um candidato que havia considerado “de Pirro” a vitória europeia de Seguro, esta votação não pode ser considerada menos que… ridícula, e nunca – mas nunca – o que uma desconfortável Ana Catarina Mendes disse à Lusa: que “evidentemente” se sente “uma forte mobilização do PS em torno da candidatura de António Costa”.

O que parece evidente é que, pela terceira vez, António Costa fez mal as contas aos apoios que tinha, e talvez nem a mobilização da aristocracia elistista lisboeta possa salvá-lo do contributo mais decisivo para dividir – talvez em definitivo – um partido que tinha, há alguns meses, intenções de voto suficientes para uma vitória eleitoral próxima de uma maioria absoluta. Que eu, sublinho, considero o resultado mais anti-democrático produzido pelo exercício da Democracia.

Artigo de Pedro Pereira Neto