RIP Noção

Entretanto, numa esplanada…

“Pá, o gajo é sempre a mesma coisa. É que já não tenho paciência para as merdas dele. Passa a vida aqui no café, mas quando é para ser a sério, diz sempre que não tem tempo para nada. Pá, diz-me, a sério, diz-me só, quantas vezes tu não chegaste aqui ao café e ele já cá estava? Sempre, certo? Claro. Eh pá, não tenho pachorra, mesmo. O gajo já me enerva. Esgota-me o cérebro. E depois ainda diz para começarmos a participar em torneios e o caraças. Mas como, se ele próprio corta-se sempre? Impossível assim, pá. Todo contente, fui feito parvo inscrever-nos no raio do torneio. Eh pá, o gajo joga bem e tal, estava mesmo confiante que chegávamos lá e fazíamos boa figura. Pá, ganhar também não digo, mas não íamos lá passar vergonhas, percebes? E depois o gajo, à última da hora, liga-me a dizer que não podia ir. Pá, que não tinha tempo e o caraças. Mas como é que aquele gajo não tem tempo, pá! Então ele passa a vida aqui no café. Aqui no café já ele está todos os dias a jogar, mas quando a coisa é mais séria, como por exemplo, eu inscrevê-lo num torneio de setas, daqueles como deve ser e tal, ele corta-se logo à grande. Que pateta, pá. É assim que se vê os amigos. ´Tás a perceber-me? Ya, o gajo é um tretas do pior. Tipo, se ainda me desse uma desculpa plausível, pá. Mas, nada. Ah, e tal e coiso, não tenho tempo, não vai dar. Mas como não tem tempo? A sério? Como é que ele não tem tempo, se passa os dias aqui no café a jogar às setas e a beber cerveja. Diz-me, pá, como é que ele não tem tempo para irmos os dois participar num torneiozinho de setas mesmo à maneira? Diz-me, a sério, achas que eu não tenho razão para estar chateado com ele? Tipo, se ainda me dissesse que a mãe ou o pai estavam no hospital, eu ainda mais ou menos percebia, mas nada. Ah, não posso e tal. Não tenho tempo. Sabes como é. Mas sei como é, o quê? Sei como é que é desapontar as pessoas, é? Não, não sei, pá. Eu ia lá agora desapontar assim as pessoas? Tipo, se me convidassem para entrar num torneio de setas, ó meu amigo, eu dizia logo que sim e nem olhava para trás. Mas aquele gajo é sempre a mesma porcaria. No outro dia, disse-lhe aqui, no café, que um dia tínhamos de ir ali ao café ao fundo da rua dar uma tareia nos gajos que costumam ali jogar. Sabes o que é que ele me disse? Sabes? Disse-me: YA! ´Tás a ver? Estava logo pronto, mas quando eu realmente avanço para as coisas, ele é logo o primeiro a cortar-se à grande. Não posso contar com ele para nada. Há que estabelecer prioridades na vida. Ou se está disponível, ou não se está. Agora enrolar as pessoas é que não. Se ele não queria ir ao raio do torneio de setas, bastava dizer-me que não queria ir ao torneio. Agora, afirma sempre com a cabeça de cada vez que lhe falo no torneio e depois, quando as coisas são realmente sérias e importantes, ele diz que não pode. Que não tem tempo. Que vai ter de ficar a trabalhar. Mas como assim, se ele passa a vida aqui no café agarrado à merda das setas? Diz-me só, achas que não tenho razão em estar passado da marmita com aquele cabrão? Um gajo faz tudo por ele, paga-lhe uma carrada de jolas e passa horas com ele aqui no café a jogar às setas, e quando precisa dele, quando pede um pouco que ele se comprometa, eis que nunca pode, não sabe, porque vai trabalhar. Mas, ou um gajo está comprometido com a coisa, ou bem que não está. Assim é que não dá. Ai dele que me apareça aqui hoje. Se ele aparece aqui hoje a desafiar-me para irmos jogar setas, eu nem sei bem como irei responder porque estou mesmo lixado com ele. Eu não sei mesmo o que é que ele fazer da vida dele, pá. Tipo, se ainda tivesse filhos para criar, mas os putos dele estão todos no estrangeiro, pá. E, se calhar, até foi por ter um pai que não gosta de se comprometer com coisas sérias que eles fugiram para o estrangeiro. ´Tou mesmo a ver, um dos putos a pedir ao pai para ir jogar um joguinho de setas e ele a dizer que não podia e tal, porque não tinha tempo, e tal. Eu, se fosse filho dele, fazia a mesma coisa. Punha-me logo a andar. As pessoas têm de ser sérias, ´tás a perceber? O mundo não é só trabalhar. Um gajo tem de se importar com as coisas realmente importantes, ‘tás a ver? Se o torneio fosse aqui no café, eu queria ver se ele dizia que não. Eu gostava mesmo de ver se ele dizia que não podia vir, porque não tinha tempo, e tal. Visto que ele passa a vida aqui a jogar às setas, eu queria mesmo ver. Ya, estou mesmo passado com aquele gajo, pá. Nunca mais o convido para um torneio de setas. Já vi que, para as coisas realmente importantes da vida, não se pode contar com ele…”

Noção. Assim como a boa educação, trata-se de algo em vias de extinção. Não há noção do que é realmente importante nesta vida. Estragam-se amizades por coisas absurdas. Existe uma guerra no mundo. A vida está cada vez mais cara. A pobreza aumenta de uma forma exponencial e incontrolável. Não se vê um esforço significativo para controlar a poluição e consequente falência do planeta. Mas… o torneio de setas. Isso é que não se pode falhar. Senão, qual seria efectivamente o sentido da vida?

RIP Noção, onde quer que estejas nos dias de hoje…