Silêncio (Review)

Silêncio é um filme sobre dois padres jesuítas portugueses que falam inglês, língua esta que depois se vem a descobrir que é na realidade português. Estranho? Confuso? Sim, mas o resto do filme é bastante explicativo…

 

Título Original: Silence

Ano: 2016

Realizador: Martin Scorsese

Cinematografia: Rodrigo Prieto

Produção: Vittorio Cecchi Gori, Barbara De Fina, Randall Emmett, David Lee, Martin Scorsese

Argumento: Jay Cocks, Martin Scorsese, Shûsaku Endô

Actores: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson

Música: Kathryn Kluge, Kim Allen Kluge

Género: Drama, História

 

O som do vento e dos pássaros marca o início do filme em tela negra. De rompante o som cessa e o filme ganha imagem, cor e história. Acabará com o regressar desses mesmos sons selvagens, marcando um intervalo de 2 horas e 44 minutos de “silêncio”. Esse “silêncio” é figurado, claro, mas o apontamento inicial e final balizam o tema do filme. Silêncio é um filme lento, mas de grande substância, debruçando-se sobre a espiritualidade, o choque de culturas e a intolerância que dai advém, que separa pessoas e tenta a lealdade e a fé. Seria redutor olhar para filmes como Resgate do Soldado Ryan (1998) e, principalmente, Apocalypse Now (1979), para estabelecer algum tipo de comparação, no entanto, é muito mais do a procura por um suposto dissidente ou mentor, é uma procura pelos limites da fé, e aí se encontra o silêncio divino, nas preces que não são respondidas.

A história dos dois padres jesuítas portugueses, Rodrigues e Garupe, nas interpretações de Andrew Garfield e Adam Driver, e a sua procura pelo seu mestre Ferreira (Liam Neeson) poderia ser mais um filme, não fosse a atenção ao detalhe e ao corte com vários clichés cinematográficos ocidentais. A visão de Scorsese dispensa uma abordagem orientalista do Japão. Não é uma nação colorida baseada em terminologias exóticas e fantasiosas. É um pais marcado por uma Idade das Trevas, que esbarra contra o aparente Renascentismo Europeu, marcada pela expansão europeia e pela colonização. Embora a contextualização histórica nem sempre seja clara, o Japão é um país a fechar-se, negando a liberdade religiosa daqueles que descobriram no Cristianismo uma nova maneira de ver a fé. Embora ausente do filme, não é um pensamento intolerante tão diferente assim daquele que existia na Europa nesse mesmo período. De maneira acidental, ou não, as elites japonesas, e por falta de elementos comparativos, tornam-se nos vilões da fita. Apenas os cristãos católicos japoneses aparecem como figuras de total bondade e caridade na forma como abordam e morrem pela sua fé.

A cinematografia é também um ponto forte, pela ambiência cinzenta e fria, que contrasta mais uma vez, com a elegância e extravagância que é, por vezes, comum na interpretação do Japão. É de facto um período cinzento para o país, mas também de corte com os impérios ocidentais que tentaram a todo o custo evangelizar e controlar o território. Mesmo assim a beleza está lá, nos planos paisagísticos bem orquestrados e na ambiência melancólica que a história transmite, religiosamente executados. Destaque também ao departamento de arte, composto por artistas japoneses, o que acentua a credibilidade visual do filme.

Filosoficamente e teologicamente, o filme questiona a fé, os seus limites e o “silêncio” de Deus. E, para uma audiência mais ateísta, ou com uma espiritualidade diferente, poderá ser difícil compreender muitas destas questões, ou então, encontrará nas suas respostas a evidente critica às religiões institucionalizadas, que ainda hoje têm um poder tão grande. Fica em aberto a existência de um Deus ou não, e é assim que o filme balança os seus intervenientes. O ultimo acto é libertador, com um excelente momento para o actor Liam Neeson brilhar, e que poderá ser surpreendente pela mensagem que transmite, mesmo que essa mensagem torne a busca dos dois padres durante todo o filme numa procura supérflua. 

As interpretações são um dos pontos fortes do filme e surgem, em pequenos momentos e falas. Andrew Garfield poderia ser nomeado para os óscares duas vezes este ano, mas provavelmente a sua participação n’ O Heroi de Hacksaw Ridge levará a melhor. Adam Driver, assume um papel preponderante no primeiro acto, mas desaparece, dando todo protagonismo a Garfield. Liam Neeson está ausente durante quase todo o filme, mas quando regressa é perceptivel o porquê da sua inclusão tão tardia. Só depois de experienciar duas horas de filme se torna importante perceber a mensagem que quer transmitir. O elenco japonês é, também, uma oportunidade para diversificar Hollywood em termos culturais. Issei Ogata interpreta Inoue, balançando um suposto vilão, com uma faceta cómica, que poucas vezes é arriscada num filme tão sério. Yôsuke Kubozuka como Kichijiro, questiona os limites da fé e da cobardia, mas é, também, uma critica aqueles que pecam, mas encontram na absolvição divina uma maneira de o repetir, sem limitações. Há riqueza neste elenco e na história que cada um tenta contar.

Num filme sobre “silêncio”, a música é, também, um elemento bastante ausente. Foi sem dúvida intenção do filme guardar um ou dois temas para os momentos necessário, mas enquanto noutros filmes a ausência de som pode ser desconfortável em Silêncio é bem vinda, ao ponto da sua ausência ser incómoda, mas ao mesmo tempo causar espanto.

Silêncio é um filme longo, com um ritmo bastante coerente, mas lento. Poderá não ser para todas as audiências, mas é, sem dúvida, para aquelas que gostam de pensar sobre as grandes pequenas questões. Não é um filme que entretenha de forma efusiva, e isso pode levar a algumas análises menos positivas. É preciso uma outra sintonia para assistir, uma outra forma de ver cinema. A audiência sai com perguntas e com certezas, pode sair revitalizada ou com dúvidas espirituais, mas é mesmo isso que Martin Scorsese pretende. Silêncio é para todos os efeitos uma obra-prima em várias dimensões, mas pode também ser o pior pesadelo de uma plateia menos preparada…

8.5

Volto para o próximo mês com mais cinema…