A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) Parte 3 – A Guerra das Trincheiras

“Acredito que a guerra está a ser prolongada deliberadamente por aqueles que tem poder para acabá-la. Acredito que esta guerra, onde entrei por ser uma guerra de defesa e de libertação, se tornou numa guerra de agressão e conquista.”

– Capitão Britânico S. Sassoon, em “The Times” a 30 de Julho 1917

 

Em 1916, o Mundo está esgotado pela guerra. Um conflito que explodiu pela morte do arquiduque Francisco Fernando alastra pelo globo, e o facto de muitas futuras nações estarem ainda sobre a alçada de grandes impérios facilita que de um momento para o outro continentes inteiros estejam envolvidos num conflito que não lhes pertence. Com uma guerra sem fim à vista, mais nações vão perdendo a sua neutralidade, e gerações inteiras vão perdendo a vida nos diversos teatros de guerra.

Na Frente Ocidental, os soldados nas trincheiras questionam cada vez mais o verdadeiros significado da sua luta, e as condições miseráveis a que estão sujeitos desafiam a sua saúde, tanto física como mental. Com poucos avanços a guerra das trincheiras é um conflito lento com avanços e recuos que levam a milhares de mortos na tentativa de avançar apenas uns metros. Para melhor compreender as particularidades deste tipo de conflito é preciso perceber o que realmente representam as trincheiras. Este tipo de escavações, ou depressões, na terra são linhas que se estendem por milhas e definem posições defensivas de terreno, que protegem os soldados do fogo inimigo e conseguem até certo ponto defendê-los de ataques de artilharia. Separadas por grandes campos de ninguém e protegidas com arame farpado, inviabilizam muitas vezes as cargas de infantaria não só pela existência de arame mas também pelo posicionamento estratégico de metralhadoras e vigias sempre preparados. A guerra é lenta, e feita de missões de reconhecimento às trincheiras inimigas e tentativas de avanço, muitas vezes desesperadas, apenas para conquistar uma nova posição cem metros à frente.

Embora haja alguma rotatividade nos exércitos, que facilitam a reposição de tropas através da troca entre linhas da frente, linhas traseiras e outros postos de suporte, a vida nas trincheiras não é fácil pelo número de imprevisibilidades. A artilharia inimiga e os snipers podem matar sem avisar com um disparo bem efectuado, da mesma forma que de um momento para o outro os soldados podem ser chamados para uma nova carga de infantaria que através de um aviso sonoro os obriga a correr para a trincheira inimigas, mas também para o alcance das balas das metralhadoras. No meio da imundice, juntam-se ainda as evoluções bélicas como o gás, que matam, criam problemas de saúde crónicos e enlouquecem a mente já conturbada das suas vitimas. Nem as mascaras de gás, equipamento obrigatório a qualquer soldado na guerra, conseguirão salvar muitos dos combatentes da Grande Guerra.

Quando a morte não vem pelos mecanismos de guerra do inimigo, os elementos complementam a valsa. Os feridos morrem pelas infecções devido à falta de higiene e de antibióticos, principalmente porque ainda não tinham sido inventados. Disenteria, tifo e cólera são as doenças principais, juntando-se as infecções causadas pelos parasitas. Os soldados vivem juntamente com ratos e outros animais que não facilitam a sua higiene, e trazem consigo toda uma ameaça que ultrapassa o alcance das balas. Feridas tornam-se facilmente em tecido necrótico, e assim surge a gangrena. As chuvas tornam também as trincheiras num amontado de lama, propiciando infecções fungicas. E se as coisas não podiam piorar, a morte persegue os vivos! Amontoados de corpos de soldados jazem nas vastas terras de ninguém e os seus camaradas olham impotentes, pois não há onde colocá-los sem arriscar a vida de mais soldados. Os altos comandos rejeitam qualquer tipo de pausa humanitária para a recolha de corpos, mas algumas excepções são feitas durante a guerra.

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Mark I

O armamento nas trincheiras é tão limitado como seria expectável num lugar tão claustrofóbico. No meio das granadas, pistolas, espingardas, caçadeiras de canos cerrados, uma arma começa a perder a sua utilização para os soldados, a baioneta. A invasão de trincheiras significa por vezes um combate mano-a-mano num espaço muito estreito. A baioneta é adicionada à ponta da espingarda e representa uma lâmina que facilmente transforma uma arma de alcance numa arma de combate corpo a corpo. Os soldados vêm no entanto o seu principal problema, fica facilmente presa no corpo do adversário, numa situação onde todos os segundos contam, o que não só invalida o objecto cortante, como toda a espingarda. As alternativas acabam por ser utensílios improvisados como pás e machados.

As trincheiras tornam-se em sinonimo da futilidade e da incapacidade para acabar com a guerra, e por isso ambos os lados tentam arranjar alternativas de forma a ganhar terreno. A aviação é um ponto fulcral, e os alemães serão pioneiros na sua implementação, mesmo quando os modelos utilizados são de elevado perigo para os seus pilotos. Já os britânicos, criam no final de 1915 um veículo, que tal como o avião, revolucionará a guerra moderna para sempre. Baptizado de Mark I, o primeiro tanque de guerra entra em acção em 1916. Claro que estes primeiros protótipos assustaram o exercito alemão pela sua capacidade decisiva em abrir caminho pelo arame farpado e por passar por cima das trincheiras, dando cobertura à infantaria e disparando tipos de armamento razoáveis. Infelizmente para os britânicos, não era ainda o veiculo aperfeiçoado que necessitavam, e depressa os alemães perceberam que um morteiro podia destruir um destes veículos sem problemas, especialmente porque os depósitos de combustível se situavam muito em cima na sua estrutura, ou seja, explodiam directamente em cima da tripulação. Para realmente perceber o problema, os corpos incinerados dos soldados eram recolhidos por uma equipa própria, que fazia também a limpeza e o aproveitamento do que sobrasse do veiculo.

A Primeira Guerra Mundial testou ao limite todos aqueles que lutaram pela defesa e pela soberania dos seus países, mas o resultado é um número catastrófico de perdas, numa geração morta em combates fúteis de interesses superiores. A verdadeira face da guerra pode ser encontrada em muitas fotografias de época, como aquela que se segue, tirada em Setembro de 1916. Assustadora em primeira instância, mas testemunho enorme de um dos grandes problemas de qualquer guerra. Em inglês a palavra é shell shock, em português chamamos-lhe stress pós-traumático. A face da guerra é a loucura, traduzida nos olhos deste soldado no seu momento de rotura, olhos de quem já viu demasiado e mesmo assim sobreviveu. Muitos soldados acabaram por ser executados por traição ou por deserção quando na verdade tentavam realmente fugir de si próprios e dos demónios que construíram durante todo o conflito. Muitos levaram os demónios consigo até ao fim das suas vidas.

Shell shocked soldier, 1916
A Face da Loucura

A perda de soldados requer ainda que algumas nações mudem a sua estratégia de recruta de modo a compensar no teatro de guerra. A Inglaterra mantinha até 1916 um regime de voluntariado, compensado por um império marítimo assinalável que se traduzia na presença de tropas indianas e canadenses no teatro de guerra europeu, e um pouco por todo o mundo, mesmo que na realidade o conflito não dissesse verdadeiramente respeito a estes territórios. O país de sua majestade tinha também uma das alianças mais antigas do mundo, o Tratado de Windsor, com um pequeno país à beira mal plantado…

Portugal mantém a sua neutralidade o mais que pode, especialmente porque as suas colónias são agora palcos de guerra entre as potências europeias. Um país ainda conturbado com as consequências da instauração da República em 1910 vive num conflito entre forças politicas. Para o partido de Afonso Costa a entrada na guerra é uma forma de legitimar a aliança com Inglaterra e contribuir para os esforço das democracias europeias contra os impérios centrais. Mesmo dentro do governo as posições não são unânimes, mas há algo que parece unir muitos dos agentes políticos: as colónias portuguesas devem ser defendidas a todo o custo!

Para os intervencionistas a participação na guerra seria uma forma de legitimar os territórios coloniais portugueses na mesa das negociações de paz, especialmente depois dos rumores de um pacto secreto entre a Inglaterra e o Império Alemão que visava a divisão das colónias portuguesas entre ambas no pós-guerra. A entrada na guerra seria também uma maneira de unir as forças politicas portuguesas num esforço patriótico conjunto que resolveria a instabilidade e a desordem dos primeiros anos da Primeira Portuguesa. Esta visão optimista estaria muito longe da verdade! Com todos os problemas que a entrada na guerra causaria a Portugal, com a perda de vidas humanas e uma maior instabilidade politica que eventualmente levaria a um golpe militar contra o governo democrático de Afonso Costa e à instauração da ditadura de Sidónio Pais, o país não está preparado nem equipado contra a nova tecnologia bélica.

Em Fevereiro de 1916, a Inglaterra decide pedir a Portugal que apreenda todos os navios alemães e austro-húngaros nas costas portuguesa. O governo decide anuir e em Março a Alemanha declara guerra a Portugal, mesmo depois de várias escaramuças já existentes em territórios coloniais desde 1914. Angola e Moçambique estão no meio de fogo cruzado e o envio de tropas para o reforço destas posições coloniais já tinha acontecido também em anos anteriores.

O ministro da guerra, o General Norton de Matos juntamente com o General  Tamagnini criam o centro de instrução de Tancos, descrito como um “milagre”, pois dizia-se transformar qualquer homem num soldado apto. O resultado é o Corpo Expedicionário Português (CEP), uma força militar mal equipada que entraria de facto na guerra em 1917. No entanto, essa é uma história para outra altura…

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Preparativos para o embarque do CEP, Lisboa, 1916

O ano de 1916 vai trazer consigo as batalhas mais longas e mais mortíferas no teatro europeu e de toda a guerra. Na Frente Ocidental, o exercito alemão realiza uma ofensiva a norte da cidade histórica de Verdun, a nordeste da França. A batalha prolonga-se de Fevereiro a Dezembro e os alemães tentam capturar a cidade de forma a destruir a moral dos Aliados. No entanto, a ofensiva é dificultada pela chuva e pelo rápido reforço das linhas por parte do exercito francês. Temendo a ofensiva do império do Kaiser, é pedido ao Império Russo que deposite um esforço extra na Frente Oriental de forma a obrigar o exercito alemão a redistribuir os seus recursos. Os russos estão em desvantagem numérica mas cedem, o resultado são 70 mil soldados russos mortos.

A Batalha de Verdun é marcada por um comportamento defensivo por parte das tropas aliada até Agosto. Os alemães não dão tréguas, usando artilharia e gás em localizações vizinhas e intercalando ofensivas em margens diferentes do rio. A contra-ofensiva aliada viria em finais de Outubro, planeada pelo General Robert Nivelle, conhecido pela frase “Eles não passarão!“, que organiza um dos bombardeamentos de artilharia mais longos da historia militar francesa. Pouco a pouco, o exército francês ganha posições estratégicas aos alemães e em Dezembro uma última ofensiva obriga o exercito do Kaiser a retirar. A ofensiva alemã tinha como objectivo capturar Verdun e causar elevadas baixas aos franceses, no entanto, o número de mortos acabou por ser equivalente. Milhares de soldados são aprisionados pelos franceses e alguns membros do alto comando do Kaiser reclamam pelas condições das suas celas. A resposta do general francês Charles Mangin torna-se também histórica: “Lamentamos, cavalheiros, mas não estávamos à espera de tantos.

Também em Julho outra batalha decidirá o destino da guerra no norte da França. Os Aliados realizam uma ofensiva em Somme, planeada pelos britânicos, começando com cargas de artilharia de forma a destruir o arame farpado que rodeava as trincheiras alemãs. Acredita-se que esta táctica possibilitará uma carga de infantaria bem sucedida. No entanto, o primeiro dia de batalha traz quase 19 mil mortos ao exercito britânico. Julho trará uma ofensiva Aliada pela calada da noite que possibilitará um avanço de cerca de mil metros no campo de batalha. A capacidade alemã para organizar a defesa impossibilita que o exercito aliado continue a conquistar terreno e as forças militares vão-se equilibrando mutuamente.

A Batalha de Somme obriga que parte da artilharia em Verdun seja redireccionada o que acaba por contribuir em favor dos aliados em ambas as frentes. É também em Somme, já em Setembro, que o o tanque de guerra faz a sua primeira aparição a nível bélico. Os aliados avançam cerca de dois quilómetros com a sua ajuda e desmotivam por completo as tropas alemãs. Mais uma vez os elementos acabam por trair o avanço trazendo a chuva. Em Novembro, com as primeiras manifestações de neve é feito um cessar-fogo. Os alemães perdem cerca de 64 km de terreno mas não é uma derrota total, e muito menos uma vitória para os aliados. O número de mortos, tal como em Verdun, é sensivelmente equilibrado, com cerca de meio milhão de feridos ou mortos de ambos os lados.

Entre os feridos do exército alemão na Batalha de Somme está o cabo Adolf Hitler, ferido na anca esquerda por uma explosão de um projéctil. Para este cabo alemão o seu papel na história ainda mal começou. Já do lado britânico, o escritor J. R. R. Tolkien participa na sua única batalha na guerra, sendo retirado várias vezes da frente activa por problemas de saúde, facto este que poderá ter salvo a sua vida em varias circunstâncias.

A nível marítimo a Batalha da Jutlândia, no Mar do Norte, torna-se na maior batalha naval da Grande Guerra opondo as duas potências marítimas: a Inglaterra e o Império Alemão. Como é habitual nesta Primeira Guerra Mundial o resultado é indefinido, embora a superioridade estratégica dite uma vitória para os britânicos. Mas o verdadeiro e único resultado realmente palpável é a destruição de navios e perdas de vidas humanas. Embora destruindo mais navios a marinha alemã é incapaz de quebrar o bloqueio inglês ao mar alemão. O mar do Norte mantém-se sobre a alçada de Sua Majestade.

Em África, as escaramuças continuam, com vitórias decisivas dos Aliados contra o Império Alemão, que fica restringido à África Oriental Alemã, actual Tanzânia, Burundi e Ruanda. Um pouco por todo o globo, a guerra está longe de acabar, e tudo depende da possibilidade de uma paz duradoura entre potências europeias e de um cessar-fogo, que começa a tardar, em pleno território europeu.

Em Agosto de 1916, a Itália, já em guerra com exército austro-húngaro, decide estender oficialmente a sua beligerância ao Império Alemão com mobilização de tropas para o efeito. A Roménia, também em Agosto, acaba por declarar guerra aos impérios centrais da Tríplice Aliança, começando uma ofensiva pelos Cárpatos. Infelizmente o avanço inicial sem oposição é apenas uma ilusão, pois o exército do Danúbio, formado por alemães, turcos e búlgaros, invade o pais e conquista Bucareste em Dezembro. A entrada na guerra da Roménia, é curta e desastrosa.

Enquanto a guerra se desenrola na Europa, um país norte-americano tenta a todo o custo manter a neutralidade, mesmo quando esta é testada pela Alemanha. O presidente Woodrow Wilson tenta manter os EUA fora da Grande Guerra, mesmo quando diversos ataques vitimam cidadãos americanos pelo globo. Em comunicação com os intervenientes da guerra, Wilson tenta mediar as exigências de paz de ambos os lados facilitando uma possível conferência que acabaria com a guerra, mas acaba por desistir no final do ano. Eleito para um segundo mandato ainda em 1916 com o slogan “Ele mantém-vos fora da guerra”, Wilson teria um papel fulcral em decisões a haver, mas não conseguiria cumprir essa mesma promessa eleitoral.

A balança que equilibra as forças militares da Primeira Guerra Mundial está prestes a partir, e é impossível perceber que lado irá realmente triunfar. Novos agentes preparam a sua entrada na guerra, enquanto outros, levados à exaustão, cairão como gigantes, devido aos ventos de uma nova Europa revolucionária que defenderá os direitos dos povos onde os grandes falharam, mesmo quando isso leva as nações a optar pelos extremos, numa alegada corrida pela sobrevivência ou pelo patriotismo. A próxima crónica analisará os últimos suspiros desta Grande Guerra…

 

Algumas referências úteis:

Afonso, Aniceto & Gomes, Carlos (2010), Portugal e a Grande Guerra, Verso da História, Vila do Conde

Gilbert, Martin (2014), The First World War, Nova Iorque, RosettaBooks

Keegan, John (2000) The First World War,  Nova Iorque, Vintage

Stallings, Laurence (1933), The First World War: A Photographic History, EUA, Simon & Schuster