Alan Rickman 1946 – 2016: Um Saudoso Yippee-ki-yay, Hans Gruber!

O ano de 2016 está a ser completamente desconcertante ao nível das artes e da cultura. Se a morte de David Bowie, que além de musico deixa um legado cinematográfico em filmes como O Labirinto (1986), Basquiat (1996) e O Terceiro Passo (2006), apanhou qualquer um de surpresa, nada nos preparava para a derradeira “saída de cena” de um dos actores britânicos mais carismáticos e icónicos das ultimas décadas, Alan Rickman. Embora conhecido maioritariamente como Severus Snape na saga de Harry Potter (2001-2011) ou pelo terrorista alemão Hans Gruber em Die Hard (1988), é redutor pensar que a sua brilhante carreira se resume a duas personagens icónicas ou somente à interpretação de vilões. Alan Rickman fez um pouco de tudo, e tem também uma carreira na interpretação de certa forma peculiar. Na crónica de cinema deste mês no Ideias e Opiniões faz-se a merecida homenagem a um dos grandes actores de uma geração.

Nascido a 21 de Fevereiro de 1946 nos subúrbios de Londres, Alan Rickman, começou deste cedo a ter gosto pela representação participando nas mais variadas peças escolares. O seu pai morre de cancro quando tem apenas 8 anos, mas o actor recorda a sua infância como empobrecida mas feliz. Já nos anos 60, estuda design gráfico e acaba por fundar uma pequena companhia com alguns amigos. Sempre com gosto pela representação, e com 26 anos, inscreve-se na Royal Academy of Dramatic Art. Segundo o actor este salto, embora tardio era inevitável, embora não se tivesse proporcionado ainda, maioritariamente porque havia “outros caminhos a percorrer primeiro”.

Em 1978, junta-se à Royal Shakespeare Company mas critica a estrutura implementada, nomeadamente pela falta de apoio dado a jovens actores. No inicio dos anos 80, acaba por interpretar pequenos papeis em séries, rádio e peças de teatro. Ainda antes do seu primeiro e icónico papel em Die Hard, Alan Rickman destaca-se com a produção teatral Les Liaisons Dangereuses (1987) onde se começa a notar o seu carisma e magnetismo em palco. A sua interpretação e a qualidade da produção levam-no à Broadway, recebendo também uma nomeação para os Tony Awards.

Mas é em 1988 que a carreira de Alan Rickman dá o grande salto, ao interpretar o terrorista alemão Hans Gruber no filme Die Hard, que em Portugal se chamaria Assalto aos Arranha-Céus. É o primeiro grande sucesso do actor, e é desde logo evidente a mestria de Alan Rickman para interpretar vilões carismáticos mas assustadores. E se a sua presença é melhorada pelos diálogos icónicos do filme, o que será dito da sua voz, uma das suas características mais memoráveis na interpretação.

O papel de Hans Gruber tem no entanto mais que se lhe diga, uma vez que Alan Rickman, mesmo com resistência dos produtores, teve a liberdade para modificar muitas das características da sua personagem, nomeadamente em termos de guarda-roupa e personalidade. O cliché do terrorista fortemente armado, impulsivo e mal educado muda drasticamente para um vilão bem vestido, carismático, educado mas perigoso, muito perigoso! O filme ganhou com a construção de personagem de Alan Rickman! Numa cena o actor recusou-se inclusivamente a ver a sua personagem agredir um dos seus capangas por achar que isso não se adequava à personalidade de Gruber, protestando também, que a atitude da personagem feminina em toda a cena não passava da aplicação de estereótipos sexistas da mulher como vitima.

Depois do sucesso de Die Hard a participação de Alan Rickman noutros filmes foi apenas um passo. Os 90 estão recheados de participações do actor que ficam para a historia mesmo quando os filmes são medíocres ou não são bem acarinhados nas bilheteiras. O seu papel de Xerife de Nottingham em Robin Hood: O Principe de Ladrões (1991) vem apenas cimentar a sua fama como vilão, mesmo quando a personagem difere de Hans Gruber pelo seu temperamento impulsivo e ocasional infantilidade. É outro personagem, mas a mestria de Alan Rickman é a mesma! O actor recusa, no entanto, a catalogação como vilão, afirmando que uma palavra não deve definir a personalidade de uma figura.

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Alan Rickman afasta-se desta etiqueta participando em duas comédias , uma menos conhecida Bob Roberts – Candidato ao Poder (1992) ,e mais tarde, Heróis Fora de Órbita (1999) onde divide a tela com Tim Allen e Sigourney Weaver numa sátira clara às séries de ficção cientifica. Estranho é olhar para Alan Rickman numa comédia, especialmente com o nível de caracterização e sátira que acompanha a sua personagem. Embora de certo modo pitoresco para quem apenas conhece os grandes papéis de Alan Rickman, o actor nunca desilude, porque era e é, um artista que se adapta a todos os desafios. O mesmo acontece com o filme de fantasia e comédia Dogma (1999), onde o actor interpreta o arcanjo Metatron.

Ainda nos anos 90 participa na adaptação de uma obra de Jane Austen Sensibilidade e Bom Senso (1995) e também no filme para televisão Rasputine (1996), contracenando com Ian McKellen e Greta Scacchi. No papel principal, Alan Rickman destaca-se mais uma vez pela sua dedicação ao mesmo. O monge russo Rasputine nunca tinha sido interpretado com tanta atenção à sua própria humanidade, mesmo que dentro de uma ambiguidade própria de uma das figuras mais misteriosas da história. 

A passagem do novo milénio levaria Rickman ao papel mais icónico da sua carreira, Severus Snape, na consagrada franquia de Harry Potter. Uma personagem tão complexa que levou a uma interacção directa e especial com a autora dos livros, J. K. Rowling. Um actor sempre preocupado com a integridade das suas personagens e do seu trabalho disse à celebre autora que só podia ser Snape se o conhecesse. O que Rowling lhe disse, soubemos há dias, explicou-lhe o significado da palavra always (sempre). Esta informação críptica, que o actor não percebeu em primeira instância foi o fio conductor que o acompanhou até à revelação do último livro, e do último filme da saga.

Em Severus Snape temos talvez um dos maiores testemunhos da mestria de Alan Rickman para a representação, e se de facto é por esse papel que viverá para a eternidade podemos afirmar que ao contrário de outros actores esse reconhecimento é mais que justo. Severus Snape é uma personagem complexa, que vive numa zona neutral em termos de moralidade, embora as suas motivações façam parecer que estamos perante um vilão até bem tarde na história. Não é no entanto um herói, no sentido literal e fantasioso, tem defeitos e virtudes, e isso dá-lhe um lado humano que o afasta da visão unidimensional que marca tanto heróis e vilões que são sempre pilares de virtude ou malevolência.

Trazer isto tudo para a tela sem vacilar, mesmo sem saber o verdadeiro destino da sua personagem é uma tarefa difícil e um obstáculo, que ultrapassou através do seu empenho e dedicação a Severus Snape. A marca deixada pela sua participação na saga Harry Potter levou muitos fãs a partilhar homenagens em diversos pontos do globo, sendo que esta é a derradeira prova de reconhecimento, que ultrapassará com certeza qualquer nomeação e prémio que poderia ter recebido na sua carreira.

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Embora a primeira década deste milénio para o autor pareça resumir-se a Harry Potter, está longe de ser verdade! Esta é talvez a década mais variada em termos de papeis para Rickman. De comédias românticas como O Amor Acontece (2003), a dramas como O Perfume – A História de Um Assassino (2006), ou passando pelo musical de Tim Burton Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street (2007), Alan Rickman interpreta uma mão cheia de personagens, intercaladas com o seu contributo para o universo de J. K. Rowling. Dá ainda o seu contributo como a sua voz icónica e facilmente reconhecível em filmes como, À Boleia Pela Galáxia (2005) ou interpretando a famosa lagarta azul da adaptação de Tim Burton de Alice no País das Maravilhas, já em 2010.

Com o fim da saga de Harry Potter, e nos últimos 4 anos, interpreta papéis como Ronald Regan em O Mordomo (2013), mas também realiza! A sua primeira experiência na realização remonta a O Convidado (1997), mas em 2014 lança Nos Jardins do Rei, onde interpreta o rei francês Luís XIV, contracenando com Kate Winslet. Não é um filme extraordinário, e a direcção é por vezes pouco energética, mas nota-se que Alan Rickman sabe o que está a fazer e que história quer contar! 

A sua última participação como actor ainda em vida, é Eye in the Sky com Helen Mirren e Aaron Paul. Mas o seu último adeus será curiosamente num filme onde empresta a sua voz pela segunda vez à mesma personagem. Com data prevista para este mesmo ano, Alice Through the Looking Glass é a sequela do primeiro filme de Burton baseado em Alice no País das Maravilhas. Alan Rickman será novamente a lagarta azul, neste que será, em principio, o último adeus de um dos grandes actores de uma geração.

Infelizmente, o cancro, esse bicho que mata sem grandes perguntas e aparece por vezes sem avisar tão precocemente como se gostaria, faz mais uma vitima. Alan Rickman deixa um legado marcado por dois papeis icónicos e inúmeras participações de igual qualidade que mostram a sua habilidade em transformar-se. O seu contributo deve ser explorado, visto e revisto, por actores, realizadores e cinéfilos. A sua associação à figura do vilão é redutora em relação ao seu talento. Se há falta de variedade, não é certamente na carreira de Alan Rickman. Resta por isso descobrir todo o seu contributo para a Sétima Arte e relembrar que para grande das ironias o seu Always de Snape pode adaptar-se na perfeição a dezenas de fãs do actor que certamente não o esquecerão.

Volto para o próximo mês com mais cinema…